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Nosferatu: O Regresso do Vampiro que Marcou o Cinema

Passados mais de 100 anos após a estreia de um dos mais marcantes filmes de vampiros no cinema, que teve lugar em 1922, eis que chega até nós, em Janeiro, um novo filme de Nosferatu.

Esta longa-metragem procura homenagear a obra singular do realizador alemão Friedrich Wilhelm Murnau (1888 – 1931) e que havia já mergulhado no mundo do terror gótico através da sua reinterpretação de «O Médico e o Monstro» de Robert L. Stevenson com uma visão cinematográfica própria que estreou nos cinemas em 1920, conhecido por «Der Januskopf» («A Cabeça de Janus.»).

Desta vez o filme, que conta com a direção de Robert Eggers e estreia em Portugal a 2 de Janeiro de 2025, promete ser visualmente interessante, atento aos cenários e elementos próprios de uma época passada, além da presença de cemitérios detalhados, um castelo medieval com elementos góticos e até um vislumbre da capa de um velho grimório que evoca o sobrenatural, mantendo um teor dramático fiel à visão do seu antecessor, ainda que não tenham sido ainda revelados muitos outros detalhes. Talvez porque o mistério se enquadra bem em Nosferatu!

Claramente, o contraste entre os dois filmes icónicos que distam entre si um século é marcado pelo uso de efeitos especiais inovadores que não teriam sido possíveis de ser explorados por Murnau no século passado, pelo que não veremos um filme sem som ou sem cores. A pretensão deste novo filme será certamente revalidar a figura do vampiro e manter vivo um imaginário em torno de uma entidade obscura presente em muitas histórias de terror, elevando o ser demoníaco a um nível digno que o cinema jamais poderia desconsiderar.

Sedutor a tantos níveis, o vampiro, independentemente dos seus muitos títulos e variantes, é incontornável, tal como outras feras lendárias e monstros aos quais já se consagraram diversos mitos. Nosferatu é, por isso, uma obra obrigatória dentro do seu género. Regressa a nós, da mesma forma que um demónio imortal faria, para nos assombrar e impressionar-nos. O mito retorna sempre, como o peso de uma maldição. Esperamos que, desta vez, seja mesmo para nos surpreender e satisfazer.

 

F. W. Murnau ficou conhecido por causa dos seus filmes mudos a preto e branco e a sua relação com o Expressionismo Alemão, movimento artístico e cultural do início do século XX que influenciou as Artes Plásticas além da Fotografia e do Cinema, reconhecido por ser uma reação ao Impressionismo, sendo antes focado na captação do estado de sentimentos interiores em que as linhas, as formas e as cores (quando possíveis de replicar) exploradas em cenários ou composições que desobedeciam às regras clássicas de representação, detinham uma carga emotiva e simbólica que ecoava traços muito pessoais dos artistas ante a sua visão da realidade, com tendência para a fuga ao natural e ao concreto, expondo sentimentos ocultos, por vezes sombrios e inquietantes.

É por esse motivo que os filmes expressionistas procuravam ter impacto através da intensidade refletida do teor dramático das suas histórias, às quais nunca era estranho o foco nos rostos, nas posturas e nos gestos por demais obsessivos das próprias personagens, carregadas de maquilhagens que obedeciam à intenção do jogo de contrastes entre a luz e a sombra valiosos a quem filmava algo do género na época. Não é de surpreender que o Nosferatu de Murnau seja considerado uma obra expressionista. O vampiro que nos surge adquire uma postura tensa, rígida, completamente antinatural, como se fosse de facto um morto capaz de assombrar os vivos.

Nosferatu

Tecnicamente, Nosferatu é um Não-Morto, algo que descreve a natureza de um vampiro. Sabe-se bem que Bram Stocker usou esse nome no seu «Drácula» e que esse terá sido um dos motivos para que F. W. Murnau o usasse como título do filme, uma fuga ao facto de pretender realizar uma obra inspirada no famoso livro de terror de Stocker sem pagar direitos de autor e procurando variar em diversos detalhes da história, alternando os nomes das personagens e certas caraterísticas que, para todos os efeitos, não impediram que a viúva de Bram Stocker decidisse processá-lo, levando o caso aos tribunais, que exigiram a destruição dos filmes.

Contudo, Murnou ainda salvou várias cópias e isso permitiu que tivessem sobrevivido até aos dias de hoje versões restauradas do seu Nosferatu, celebrado por intelectuais e fãs fascinados pelo género como uma obra clássica do Cinema.

nosferatu

O Nosferatu de 1922 não se apresenta como o célebre Conde Drácula da Roménia que muitos creem basear-se no infame príncipe da Valáquia que ficou conhecido para a História como Vlad Tepes ou Vlad o Empalador (1431 – 1476). Na realidade não seria a primeira alternativa à imagem do nobre vampiro inspirada pela obra de Bram Stocker, se tivermos em conta o misterioso livro de ficção sueco «Mörkrets makter» (1899) e o islandês «Makt Myrkranna» (1901) que, sendo ambos traduzidos como «Poderes das Trevas,» assumem ser uma tradução da obra original de Stocker ainda que Drácula ou, antes Draculitz, se apresente como líder de um culto perigoso que leva a cabo rituais secretos que incluem sacrifícios de mulheres.

Nosferatu é na verdade o sinistro Conde Orlock (interpretado por Max Schreck), aristocrata dos Montes Cárpatos que se apaixona por Ellen (Greta Schröder), residente na pacata cidade de Wisborg que é assolada por este senhor tenebroso, que traz consigo também a peste, identificada também com a presença de inúmeros ratos. Ellen é inspirada em Mina Murray de Bram Stocker, tal como o seu amado (neste caso, marido) é o corretor de imóveis Thomas Hutter (interpretado por Gustav von Wangenheim) inspirado pelo solicitador Jonathan Harker.

Thomas Hutter visita o conde Orlok no seu castelo, com a intenção de lhe negociar a venda de uma residência em Wisborg, mas mostra ingenuamente a fotografia da sua esposa ao aristocrata que, assim que a vê, insinua: «Que lindo pescoço tem a sua mulher.»

nosferatu poster

A história em si não é muito diferente de Drácula de Bram Stocker, se tivermos em conta esta interação inicial, não escapando a Hutter o reconhecimento da excentricidade de uma figura que dorme num caixão durante um dia e a sensação de ser vítima das mordidelas de sangue do anfitrião.

Este Conde Orlock é, apesar de tudo, careca, curvado, de aparência algo estranha. Sombrio e insólito, personifica a morte e a tragédia, indiferente ao carisma que Drácula procura cultivar com o seu lado mulherengo e sedutor, cujo comportamento serve de alegoria à lascívia correspondente aos jogos de erotismo abordados com cautela por Stocker, ciente da hipocrisia e a tendência para a repressão e censura sexual própria da sociedade da sua época. Orlock, por outro lado, é um predador que não entra em jogos.

A sua aparência é antinatural, disforme, perturbadora. Invade o espaço de uma vulnerável Ellen, incapaz de resistir ou lutar contra este intruso. Desde o início da história, quando se dá a separação entre o casal Ellen e Hutter, que a principal vítima de Orlock é alvo de premonições e sente um mau augúrio, antecipando o pior. Ellen nunca se sentirá atraída por este vampiro. Em última estância ele é praticamente um violador, a sombra do seu amado Hutter, que peca pela sua ausência.

A visão de Murnau parece ser de alguma forma propícia ao clima tenso e tenebroso que ainda se vivia em muitas cidades europeias após o final da Primeira Grande Guerra (1914 – 1918) cujos efeitos só poderiam ser descritos como pessimismo geral. Gases tóxicos, marcas de bombas e balas, inúmeros feridos e mortos, a par de outros tantos danos, que acompanharam por demasiadas o registo de doenças, entre as quais se contavam a Gripe Espanhola e casos como a propagação da Tuberculose, para não mencionar as crises económicas e as inflações galopantes, elevando o desespero de tantos cidadãos na Alemanha dirigida pela República de Weimar, só poderiam fazer de Nosferatu uma alegoria do presente, jamais romântica.

A sociedade daquela época, sobretudo dentro do enquadramento próprio de quem partilhava o sentimento de uma nação derrotada e, de alguma forma, destroçada, não reconheceria ou validaria a exposição de um vampiro que não outro senão o de uma sombra do morto que é também a do marido que partiu para uma jornada de guerra rumo à vitória mas que só poderia contribuir para o alavancar do desastre. Morte e desespero é a essência da promessa de Nosferatu.

Outra obra cinematográfica usou o título do filme de Murnau: Trata-se do «Nosferatu Phantom der Natch» de 1979, dirigido por Werner Herzog. Mas trata-se de uma adaptação pouco fiel, que faz apenas eco da importância de Drácula e não do que Murnou inicialmente idealizou, ainda que a história em si combine elementos que nos serão familiares, como a referência à peste.

Para todos os efeitos, podemos dizer que o filme de Robert Eggers será o primeiro em cem anos a consolidar-se em tudo o que reconhecemos do Nosferatu original de 1922, ainda que o idioma não seja o alemão. Este regresso há muito desejado revela ser, no mínimo, interessante. Morte, mistério, obscuridade, desespero, tragédia e horror, combinados com o que esperamos que seja um bom argumento, fiel ao trabalho de F. W. Murnau, poderá ser o quanto nos basta para nos deixarmos encantar eternamente por Nosferatu.

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