Mutant Blast: Entrevista com Lloyd Kaufman, Fernando Alle e Pedro Barão Dias
É um fim de tarde chuvoso em Lisboa e estou no lobby de um hotel bastante chique e moderno, com a arena do Campo Pequeno a poucos metros de vista. Hoje reúno-me, pela primeira vez em quatro anos, com Lloyd Kaufman, fundador da lendária produtora Troma Entertainment.
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A última vez que estive com o Lloyd foi na Comic-Con Portugal em 2015, quando o evento ainda estava na Exponor, tendo sido este o primeiro contacto com alguém que considero um herói do cinema. Mas Lloyd teve uma razão muito especial por estar de volta ao nosso país: uma pequena digressão por Portugal a promover a sua mais recente produção – Mutant Blast.
Acontece que esta não é uma produção qualquer. Esta é uma coprodução em Portugal, pelas mãos do realizador Fernando Alle, conhecido nos circuitos dos festivais pelas suas incríveis curtas-metragens Banana Motherfucker e Papá Wrestling, obras que ainda hoje são faladas quando se menciona cinema alternativo português. Com ele está Pedro Barão Dias, produtor, actor e editor da película, que tem sido incrivelmente bem recebida pelos muitos festivais do mundo, entre os quais o Frightfest, em Londres, sendo a primeira obra portuguesa de sempre a integrar a sua programação.
Tendo chegado relativamente cedo, a espera e a ansiedade são rapidamente tranquilizadas quando vemos o produtor internacional a descer para o lobby, vestido com um casaco altamente colorido, com uma imagem do rapper Tupac Shakur. Sempre animado, somos indicados até a uma zona mais calma do hotel, com sofás confortáveis, onde podemos falar sobre todo o seu envolvimento neste filme
A conversa começa com uma curiosidade sobre a vida de Lloyd. Ele, juntamente com a sua mulher, Pat Swinney Kaufman, vieram a Portugal pela primeira vez em 1974, na sua lua-de-mel; e desde então voltaram frequentemente a solo luso. Mas de repente a conversa segue o seu próprio rumo, contando como conheceu Fernando Alle:
Sabes, conheci o Fernando por causa do seu primeiro filme, ‘Banana Motherfucker’, e nunca me esqueci dele. Estávamos em Espanha, numa retrospectiva da Troma, e o filme do Fernando estava a ser exibido e soube que era um grande fã da Troma, então pediu-me para o ver, e não consegui parar de rir. Depois veio trabalhar em dois dos nossos filmes, ‘Return to Nuke ‘Em High’ e ‘Return to Return to Nuke ‘Em High AKA Volume 2’. Foi ele que pagou a sua própria viagem e veio trabalhar nos efeitos especiais onde fez um tremendo trabalho. Tive oportunidade de o conhecer melhor e ele é muito talentoso. Em 45 anos da Troma, nós descobrimos muitos talentos importantes, como James Gunn. Aliás, depois desta tournée, sigo para Atlanta onde James me implorou para participar no seu novo ‘Esquadrão Suicida’
Curiosamente, e porque Portugal está em todo o lado, a actriz Daniela Melchior integra o elenco deste novo filme da DC, da qual faço menção:
James Gunn sabe reconhecer talento porque ele nasceu na Tromaville. Novamente faço história, nem que seja por quatro segundos. Ele já me matou no universo da Marvel, agora mata-me no universo da DC. Nem o Brad Pitt é capaz de morrer nestes universos, por isso é especial.
Mas de volta ao Fernando:
Acho que o Fernando é extremamente talentoso e irá seguir os passos doutros que passaram pela Troma, como Eli Roth (‘Hostel’); ou Trey Parker e Matt Stone (‘South Park’), que começaram as suas carreiras com ‘Canibal! O Musical’ em 1993. O primeiro filme de Samuel L. Jackson também é da nossa produtora, por isso não tenho dúvida que o Fernando e o Pedro terão muito sucesso e espero que continuem a trabalhar juntos. Também espero que os portugueses apoiem este filme, porque creio que é o primeiro filme com coprodução americana que tem um apoio financeiro do governo português e estou grato pela sua mente aberta. Nós demos o orçamento ao Fernando e chegou o governo que lhe deu mais dinheiro, e não sei se sabes mas a Troma não é convidada para festivais grandes como o Sundance ou o Cannes, somos assim rebeldes.
O que Lloyd fala é de uma situação que decorreu durante o Festival de Cannes em 2017, onde houve diversos problemas com as autoridades francesas. Podem ver mais em From Festival to Fascim, disponível no seu canal de YouTube.
A conversa entretanto estende-se para a sua homenagem no MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, onde Lloyd foi selecionado, juntamente com outros contemporâneos como David Lynch, Woody Allen, os irmãos Coen, e Sofia Coppola; a controvérsia entre South Park e a China, e o seu amor pela mais recente obra de Quentin Tarantino (que também é um enorme fã da Troma), Era Uma Vez em Hollywood, onde a nostalgia levou Lloyd até a uma altura do passado.
Chegando a vez de falar com o realizador Fernando Alle, este conta a sua versão dos factos:
Perguntei [à Troma] se estariam interessados em investir dois tostões e meio numa longa-metragem e disseram que sim. Aí começamos logo a fazer a preparação do filme. Mal sabia eu o trabalho que isto ia dar, porque eu pensava que uma longa-metragem, normalmente sendo entre hora e meia a duas horas, e uma curta-metragem, entre dez a quinze minutos, que isto iria dar dez vezes mais trabalho! Afinal dá mil vezes mais de trabalho, com toda a produção e logística envolvida. Não é de todo proporcional. A pré-produção teve alguns percalços e demorou algum tempo a serem resolvidos. Entretanto o ICA entrou também a meio da pré-produção, isto em 2015, e só em 2018 é que começamos a gravar este filme. Agora um ano após ter estado a circular por festivais em todo o mundo, ele finalmente tem a sua estreia nos nossos cinemas.
Mutant Blast já é considerado por muitos, nós incluídos, como um dos filmes português mais originais a serem passados nas salas nos últimos anos, mas também pelo mundo fora, tem tido o seu devido reconhecimento:
Eu acho que a razão porque este filme tem tido tanto impacto a nível global é porque pode parecer que não é um filme mainstream, mas na verdade é um filme com uma história universal e isto foi o factor mais importante do filme. Por detrás da comédia, do sangue e das tripas todas, há coração!
Com um argumento repleto de momentos curiosos, Fernando fala sobre se houve algo considerado “demasiado” para Mutant Blast:
Eu, felizmente, fui ingénuo a escrever o argumento, porque escrevi-o com um orçamento para milhões de euros, e era uma coisa demasiado ambiciosa para o orçamento que nós tínhamos. Felizmente tive uma equipa dedicada e que acreditou naquilo. Primeiro chamaram-me de louco, e depois quando disse que era possível fazer, acederam ao pedido e metemos mãos à obra. Acho que isso é o que torna o filme especial, o facto de não termos cortado nada. Há uma sequência a meio do filme em que aparece uma ratazana que começa a matar uma bela quantidade de mutantes e a ratazana aparece em dois minutos de filme, mas ela demorou dois anos e meio a ser construída. Obviamente que se eu soubesse que iria demorar este tempo a ser construída, eu provavelmente teria-a cortado do argumento, por isso só posso agradecer à minha ingenuidade, porque se o tivesse feito, [a cena] nunca teria tido tanta piada. Com todo o trabalho que o filme teve, obviamente se tivesse essa noção desde do inicio, provavelmente teria cortado cenas e de certeza que o filme não acabaria tão bom.
Certamente que muitos gostariam de seguir os passado de Fernando, que deixa um concelho importante para jovens cineastas:
Arranjem uma família. Arranjem uma equipa que será a vossa família do cinema, e que nessa família não queiram ser todos realizadores. Arranjem uma pessoa que só quer saber do som, que só quer saber da fotografia, por aí fora, e façam disso a vossa família para fazer filmes, porque eles não se fazem sozinhos e os realizadores precisam de se unir com outras pessoas. Penso que numa escola ou numa universidade, está-se numa turma em que todos querem ser realizadores e é mais difícil assim, porque vão estar pessoas a cumprir outras funções e vão estar infelizes. Eu aqui no ‘Mutant Blast’ encontrei a minha família, com os actores, com a equipa técnica e com pessoas que quero trabalhar para o resto da vida.
Finalmente chega a vez de ouvir Pedro Barão Dias, um homem cujo seu amigo Rui Unas passou a entrevista no seu programa Maluco Beleza a rir-se, pois era incapaz de o chamar de actor. Mas há uma história muito curiosa por detrás disso:
A minha carreira começou na escrita da comédia, com o Unas no ‘Cabaret da Coxa’ para SIC Radical, depois continuei com ele no programa ‘O Show do Unas’, onde também escrevia os textos; mas tive a minha primeira experiência na representação, n”O Programa do Unas’, que era uma espécie de reality show a fingir, e nessa cena comecei a aperceber-me que estava a gostar da experiência. Sempre fui maluco por cinema, e pensei, porque não? Apesar do meu percurso ter sido sempre na onda da produção, escrita e comédia, era um desafio novo. Entretanto, conheci o Fernando, onde partilhamos uma paixão por filmes, e dá-se o caso eu participar numa curta onde o Unas também participa, o ‘Blarghaaahrgarg’, e aquilo correu tão bem que o Fernando diz-me que o que era fixe era eu matar zombies na praia, e alinhei na ideia! Ele depois fecha-se em casa durante um mês e sai com o guião do ‘Mutant Blast’ escrito. Depois disso fomos para ao pé do Cristo Rei filmar um teaser/pitch para apresentar ao Lloyd e que mais tarde lhe mostrou, e o resto é história.
A sua participação num filme produzido pela Troma dá-lhe a oportunidade de integrar o grande universo de filmes da produtora:
É muito bom! Sinto me lisonjeado! Porque há certos universos de culto e míticos, que valorizamos, e poder fazer parte desse universo é uma honra!
Tendo em conta o percurso profissional de Pedro, será que tinha ideia do rumo da sua vida?
Há dez anos atrás, jamais pensaria participar num filme onde mato zombies e mutantes, ainda mais depois de ter ganho um prémio de melhor actor (risos) no Fantaspoa, no Brasil, considerado o maior festival de cinema na América Latina. Isto é uma coisa de sonhos, é espectacular, é brutal! Eu assim que me apercebi que estava uma aventura a acontecer, deixei-me a surfar esta onda, porque isto é capaz de nunca mais voltar a acontecer!
Pedro também participa em ‘Mutant Blast’ com Maria Leite e Joaquim Guerreiro no elenco:
Eu estando grande parte do filme com a Maria, aprendi muito com ela, é uma actriz fora de série; tanto que ela ganhou o prémio de menção honrosa no MOTELX em 2018, sem eles terem o prémio. Por isso eles sentiram a necessidade de criar um prémio só para reconhecer o talento dela! Foi fascinante poder contracenar com alguém assim e espero um dia voltar a repetir. Acho curioso que grande parte do retorno é tem sempre a ver com a dupla principal, que têm uma química incrível e que querem ver mais coisas deles os dois. Inclusive já brinquei com ela a dizer que temos que fazer mais filmes, mas agora uma comédia romântica. (risos)
Já com o Joaquim, para além de ser um ser humano brutal é uma pessoa extremamente sensível e eu não consigo imaginar mais ninguém para fazer as duas personagens que ele faz, porque ele teve uma sensibilidade, tanto estética como visual, para poder fazer aquilo da forma incrível. Depois o Mário Oliveira e o João Vilas, são dois actores igualmente incríveis! Só o João Vilas faz de cinco personagens, porque o Fernando via-lhe a fazer daquelas personagens todas, é um actor versátil. O Mário Oliveira é também alguém que faz as coisas com coração e para mim foi fácil trabalhar neste ambiente. Há ambientes em que existe muita tensão, uma pessoa não se sente à vontade e descontraído o suficiente para dar o melhor de si, e neste caso não, o ambiente era de amizade entre a equipa técnica e os actores, onde criamos um espaço onde todos podiam ser os melhores.
A exibição do filme nos vários festivais pelo mundo iriam, naturalmente, criar novas histórias para contar, mas o que aconteceu no Festival Internacional de Cinema Fantástico de Bucheon é de ficar boquiaberto:
Nós chegámos à Coreia com muitas expectativas, mas não sabíamos o que íamos encontrar. Sabíamos que íamos estar na passadeira vermelha, mas não tínhamos ideia como o público Sul-Coreano iria receber o nosso filme. Claro que percebemos que é uma cultura diferente, não são tão expressivos, não falam tão alto e têm a sua própria maneira de estar. Mas também existe uma grande influência ocidental no país. Então o que acontece é que a primeira sala de cinema, com trezentos e poucos lugares, estava esgotada. Mas as outras sessões seguintes não. Ficámos na dúvida se acabariam por estar. Nessa primeira sessão ouvimos a malta toda rir-se – Brasileiros, Britânicos, Mexicanos… Aí apercebi-me da universalidade da comédia e vimos as pessoas a saírem do cinema satisfeitas. Na manhã seguinte, esgotam-se as duas outras sessões, em salas que tinham o dobro dos lugares! Foi fantástico!
Mas Pedro também teve também a função de produtor, partilhando os dois lados da câmara:
O envolvimento criativo é muito maior, claro. Eu também já tenho alguma experiência nestas coisas do audiovisual, por isso quando havia questões criativas ou algum desacordo, eu e o Fernando, que já temos uma relação de amizade pura e confiança, temos noção que não existe maldade de mim para ele nem de ele para mim, então metemos tudo em cima da mesa, e resolvemos as coisas. Mas também soube dar um passo atrás porque o realizador é ele e há que respeitar a visão de quem criou este mundo todo, porque de facto isto saiu da cabeça dele. Então foi tudo feito com o objectivo de tornar este filme melhor.
Sobre o panorama do cinema português:
Acho que estamos agora num ponto de viragem, mas sinto que ainda haja uma grande resistência a coisas que sejam puro entretenimento. Portanto, ainda têm que se dar alguns passos e não será uma tarefa fácil. Temos que insistir! Acho que temos muito potencial [em Portugal], porque somos tão bons ou melhores que os outros que estão a fazer cinema lá fora. Quando há orçamento para os anúncios publicitários, estes são feitos em Portugal, dão trabalho aos técnicos portugueses e têm resultados incríveis. Mas como não há orçamento para o cinema, o investimento é menor, então optam por investir em nos filmes art-house, e outros afins. Creio que seja também uma questão cultural, onde existem pessoas que vão para um filme e sentem que têm que o analisar dum ponto de vista mais ‘intelectual’. O cinema é um mundo! Não se tem que só analisar as coisas de uma forma literária e ou pensar apenas na sua essência.
Há muito terreno fértil por explorar em Portugal e tenho esperança poder mudar a perspectiva em como se olha para o cinema português. Eu gostava muito de tentar fazer mais coisas no nosso país, mas depende tudo de como a vida corre. Acho que é possível fazer cá o que fazem no estrangeiro.
Não existindo muitas obras de género em Portugal, onde as novelas são o meio principal para os actores em Portugal, encarando, normalmente, vidas relativamente banais, será que estão atraídos para encararem um papel diferente?
De certeza que sim! Estão ávidos desse tipo de experiências como actores! Tanto o teatro, como a televisão, está repleta de casos de drama social, drama familiar, muito drama! Depois são aquelas convenções todas de se fazer outros géneros em Portugal. Até podíamos fazer um drama de acção, pelo menos tinha acção! É uma pena.
No fim, ao despedir-me deste maravilhoso grupo, Lloyd engana-se no meu nome, chamando-me “Rodrigo”, por isso, a partir de hoje esse será o meu nome oficial, dito pelo Presidente da Troma, não há volta a dar: Olá amigos, eu sou Rodrigo Du Toit.
Assim termina um fim de tarde fabuloso com a maravilhosa companhia destes senhores que têm o objectivo mudar o cinema português, possivelmente começando uma nova onda de criatividade no nosso país, enquanto fomentam, aos poucos, o seu legado na história. E quem sabe, talvez esta não seja a última vez que veremos Lloyd Kaufman e a Troma em Portugal.
Fã irrepreensível de cinema de todos os géneros, mas sobretudo terror. Também adora queimar borracha em jogos de carros.