Jogos: Análise – Aeon Drive
Produzir um videojogo é difícil. Produzir um bom videojogo é um pequeno milagre. Aeon Drive é, felizmente, um pequeno milagre.
Enquanto jogadores, limitamo-nos frequentemente a desfrutar daquilo que nos é oferecido, sem considerarmos as escolhas concretas, os acasos e os compromissos, técnicos e criativos, que fazem de um jogo aquilo que é. Esse exercício de empatia e imaginação, contudo, é importante: quando um videojogo nos desilude, permite-nos relembrar caso seja necessário que não se trata de um ataque pessoal, é um mero resultado de um trabalho de equipa e de um conjunto de escolhas, acasos e compromissos que levaram a um caminho insatisfatório. Quando um videojogo nos surpreende pela positiva, permite-nos valorizar toda a obra e todo o esforço humano na sua base com outro apreço.
Esta introdução algo extensa serve, no fundo, para dizer que Aeon Drive foi uma agradável surpresa. Este jogo indie de plataformas com uma grande ênfase no speedrunning é muito bem-sucedido numa série de detalhes basilares que normalmente tomamos por garantidos.
Em primeiro lugar, Aeon Drive tem uma narrativa simples e eficaz, sobretudo por estar presente apenas na quantidade certa: contextualiza os eventos e as mecânicas, dá algum sabor à aventura, mas claramente não é o prato principal nem é tratada como tal. Trata-se de uma continuação dos eventos de Dimension Drive, outro jogo do mesmo estúdio, sem requerer qualquer contacto prévio com essa primeira incursão neste universo: Jackelyne, a protagonista, é uma guarda espacial cuja nave se despenha numa outra dimensão, na cidade de Neo Barcelona. Jackelyne terá de percorrer várias zonas dessa versão steampunk da capital catalã (uma clara homenagem dos produtores da 2Awesome Studio à sua cidade-natal), em busca dos vários núcleos de propulsão da nave, de modo a consertar o seu veículo… e de modo a evitar uma reação em cadeia desses núcleos, que a qualquer momento romperá com o contínuo espácio-temporal e ditará o fim do mundo.
VERA, a inteligência artificial que nos acompanha na viagem, ajuda-nos ao criar uma bolha especial dentro desse contínuo: uma bolha de exatamente 30 segundos para completarmos a nossa missão. Fica assim introduzida a pequena reviravolta na jogabilidade de Aeon Drive: cada nível tem a duração de 30 segundos, dentro dos quais teremos de ir do ponto inicial até ao portal final. É possível prolongar um pouco esse limite, colecionando energia ao longo do nível – mas todos os desafios estão desenhados para serem ultrapassados sem recurso a essa ajuda.
Para percorrermos rapidamente os níveis, podemos correr, saltar, usar uma espada para matar inimigos e acionar certos mecanismos, e atirar um punhal especial para qualquer superfície para nos teletransportarmos para essa superfície. A jogabilidade de Aeon Drive é, desde o primeiro momento, cativante: por um lado, controlar a personagem é um processo imediato e intuitivo. Ou seja, e por outras palavras, se queremos que a personagem faça alguma coisa, é fácil pô-la a fazer o que desejamos. Por outro lado, controlar a personagem, por si só, é divertido. Do ponto de vista mecânico tudo funciona como é suposto e há um gratificante feedback visual para todas as ações.
Passado este impacto inicial, por sorte, Aeon Drive não perde o encanto. Ao longo da aventura, vão sendo regularmente introduzidas pequenas novidades que ajudam a trazer frescura aos níveis: plataformas que aparecem e desaparecem, lasers, interruptores… uma vez mais, são obstáculos e ideias simples, cuja execução simplesmente resulta bem. Para além disso, o design dos níveis é sólido e mantém-se inspirado, variado e desafiante: há momentos mais focados na fluidez do nosso movimento e na destreza mecânica; outros aproximam-se mais de pequenos puzzles em que temos de perceber as combinações de movimentos mais adequadas para ultrapassar certas secções (sobretudo para obtermos os objetos colecionáveis opcionais de cada nível). Era fácil um jogo com o conceito de Aeon Drive tornar-se repetitivo e, todavia, isso nunca acontece.
O grafismo e direção de arte contribuem igualmente para evitar uma sensação de tédio: Neo Barcelona é, em poucas palavras, uma cidade bonita e cheia de vida. Os diferentes setores da cidade são similares o suficiente para haver coesão no design, mas diferentes o suficiente para não parecerem réplicas exatas de uma só ideia. No que diz respeito à sonoplastia, a banda sonora não é particularmente brilhante, mas cumpre plenamente o propósito e apenas as interpretações vocais das protagonistas nas sequências de história deixam algo a desejar (como se costuma dizer popularmente, há ali alguma canastrice… mas a culpa é normalmente de quem dirige).
Após completarem os 100 níveis da campanha, terão ainda motivos para regressar a Neo Barcelona. Aeon Drive inclui a opção de jogar a campanha num modo co-op (local e online) e um modo PvP, de corridas contra até quatro jogadores. Se, a isto, juntarmos também as habituais leaderboards (particularmente relevantes num jogo de speedrunning) e os já referidos objetos colecionáveis nos vários níveis, ficamos com uma quantidade bastante generosa de conteúdo – e conteúdo interessante.
A 2Awesome Studio, enquanto produtora, e a CRITICAL REFLEX, enquanto editora, estão de parabéns por esta aposta em Aeon Drive. Parece fácil fazer um jogo simples e simplesmente bom, mas não é. Há, neste projeto, uma confluência de boas ideias, boas decisões e boas execuções. Tudo isso deve ser valorizado.
Classificação: 8.5/10
Aeon Drive está disponível no PC (via Steam, versão testada), PS4 e PS5, Switch, Xbox One e Xbox Series S e X.
Apesar de dar aulas de Português, não gosta de tutoriais longos nos videojogos e prefere filmes estrangeiros.