Central Comics

Banda Desenhada, Cinema, Animação, TV, Videojogos

“Flow” – Quando um software livre redefine a animação

No universo altamente competitivo da animação, dominado por um mercado de orçamentos astronómicos que parecem tão infinitos como o voo de Buzz Lightyear e que assustariam o gatinho preto de “Flow – À Deriva”, gigantes como a The Walt Disney Company e a sua subsidiária Pixar — lar do icónico astronauta — continuam a apostar em produções cada vez mais padronizadas e em sequelas intermináveis. A recente aquisição do Blue Sky Studios, conhecido principalmente por “A Idade do Gelo”, reforça essa tendência.
Flow - À Deriva
Flow – À Deriva/Divulgação

Enquanto isso, a DreamWorks impõe-se com animações mais arrojadas, recorrendo a uma linguagem adulta e satírica, frequentemente direcionada para criticar a Disney. Contudo, com o tempo, também sucumbiu ao lugar-comum e, embora ocasionalmente apresente novas histórias, estas não conseguem alcançar o mesmo impacto de clássicos como “Shrek” e “Madagáscar”. Tal como os seus concorrentes, a empresa acabou por se render às sequelas e spin-offs.

Neste cenário, “Flow – À Deriva”, do letão Gints Zilbalodis, aparece para desafiar as normas estabelecidas e provar que, mesmo com um orçamento reduzido, é possível criar um filme de qualidade que cativa tanto o público quanto a crítica, ambos em busca de novidade e autenticidade.

Criada inteiramente no Blender, um software 3D gratuito, a obra de Zilbalodis comprova que, com criatividade e ousadia, é possível superar as limitações financeiras e transformar os rumos de uma indústria que há muito carece de novos estilos e narrativas.

Esse pioneirismo e qualidade foram atestados quando o gatinho preto fez história ao conquistar o Óscar de Melhor Animação e a primeira estatueta para a Letónia.

Carlos Vizeu, fundador da Noches Produções, estúdio de animação de Niterói, no Rio de Janeiro, vê a vitória letoniana como um ponto de viragem para a indústria.

“O uso do Blender num filme dessa magnitude prova que a tecnologia acessível pode nivelar o jogo entre produções independentes e grandes estúdios”, analisa Vizeu. “Isso democratiza a produção de animação e demonstra que o talento e a criatividade são os verdadeiros diferenciais”, completa.

Flow - À Deriva
Flow – À Deriva/Divulgação

Flow

Realizado por Gints Zilbalodis, a narrativa acompanha a jornada de um gato preto solitário que, após ver o seu lar destruído por uma grande inundação, encontra refúgio num barco habitado por diversas espécies, como um cão, uma garça, uma capivara e um lémure. Juntos, enfrentam desafios em paisagens místicas, aprendendo a superar diferenças e a adaptar-se a um mundo transformado.

Aclamada pela crítica, a produção conquistou 97% de aprovação no Rotten Tomatoes com base em 151 análises, além de 98% de aprovação do público. Os elogios destacam a beleza visual e a profundidade emocional da obra, que é inteiramente desprovida de diálogos.

A força de uma narrativa sem palavras

Quem poderia antever que um filme feito com um software gratuito e sem diálogos conseguiria opor-se à faustosa Disney, com as suas narrativas, personagens e músicas quase canonizadas pelo público? Embora muito querida, há já algum tempo se aguardava uma ruptura no domínio da gigante fundada por Walt Disney.

Algo que vem se concretizando nas últimas edições dos Óscares, com vitórias como a de “Flow – À Deriva”, que este ano venceu “Divertida-Mente 2”, de Kelsey Mann, produzido pela Pixar, além de “Pinóquio”, de Guillermo del Toro (2022), produzido pela Netflix, que derrotou “Turning Red: Estranhamente Vermelho” (2022), de Domee Shi, produzido pela Pixar, e “O Rapaz e a Garça” (2023), de Hayao Miyazaki, do mítico Studio Ghibli, que bateu “Elemental” (2023), de Peter Sohn, produzido pela Pixar.

Mas, no que toca a “Flow – À Deriva”, o que torna este gatinho tão especial, talvez se pergunte? A resposta é simples: o silêncio tem algo profundo a dizer. Quem poderia imaginar que um grupo de animais em um mundo distópico nos ensinaria tanto sobre amizade, união, compaixão e a superação das diferenças?

“A ausência de falas torna a experiência ainda mais universal e emocionante. O filme prova que sentimentos e emoções não precisam de palavras para serem compreendidos”, pontua Vizeu.

Além disso, a abordagem sensorial de Zilbalodis trouxe um novo fôlego à indústria, ao abdicar dos diálogos e contar a história de uma forma absolutamente singular — algo que, para muitos, pode até parecer audacioso. E o impacto disso vai muito além do prémio: demonstra que é possível preservar a nossa autenticidade num mundo que, cegamente, tenta moldar-nos de acordo com o que já existe.

O seu sucesso transmite uma mensagem crucial: precisamos de mais produções genuínas, dispostas a inovar e desafiar o status quo, sem se submeter à pressão comercial ou à hegemonia da cultura americana.

Flow - À Deriva
Flow – À Deriva/Divulgação

O sucesso histórico da produção

O reconhecimento do filme não se limitou apenas aos Óscares. A animação também ganhou o Globo de Ouro, o César e vários prémios no prestigiado Festival de Annecy , um dos mais importantes de seu género.

Vizeu salienta que essa visibilidade pode ter um impacto significativo em todo o mercado de animação.

“Quando um filme independente atinge este nível de reconhecimento, valida a qualidade técnica e artística das produções fora do eixo dos grandes estúdios. Isto abre portas a novos talentos e motiva os países a investirem mais no sector.”

A nível global, o filme arrecadou mais de 17 milhões de dólares. No seu país de origem, quebrou recordes de bilheteira, atraindo mais de 300 mil espectadores e gerando 1,8 milhões de dólares em receitas. Esse sucesso não passou despercebido, levando o governo local a investir mais na indústria audiovisual.

Ao desafiar a lógica de distribuição e consumo locais, o trabalho de Zilbalodis conseguiu até superar grandes blockbusters como “Avatar” e “Titanic”, ambos realizados por James Cameron.

Qual é a formula do sucesso?

Em entrevista concedida a Lucas Salgado, do jornal brasileiro O Globo, no início do ano, o jovem realizador contou que a história de Flow começou ainda na época de colégio. Aos 15 anos, Zilbalodis tinha dois gatos e fez uma curta-metragem sobre um gato com medo de água.

Quando trabalhou no seu primeiro longa-metragem, “Away” (2019), ele fez tudo sozinho. O sucesso do filme proporcionou-lhe a oportunidade de conhecer diversos produtores e financiadores, além de possibilitar a colaboração com uma equipa maior.

Foi então que surgiu o desejo de explorar o personagem que, até então, era muito independente e agora precisava aprender a trabalhar em equipe — algo que ele mesmo estava vivenciando naquele momento. A partir daí, Zilbalodis decidiu revisitar a história do gato, incluindo novos personagens.

Para o cineasta, um dos factores que explicam o sucesso do filme é a ausência de diálogos. Os animais movem-se e comunicam-se de forma natural, como acontece na vida real (o cão late, o gato mia, e assim por diante), o que facilita a identificação do público com os personagens.

Ele acredita que esta abordagem torna o filme ainda mais impactante, principalmente ao imaginar os próprios animais de estimação de cada um.

Além do gato e do cão, que são baseados nas suas próprias experiências com animais, Zilbalodis fez questão de estudar os outros bichos, como a capivara, o lêmure e a garça, para evitar exageros nas caracterizações.

O futuro de Zilbalodis

O impacto do Blender não para por aí. Em entrevista recente, Gints Zilbalodis revelou que continuará a usar o software no seu próximo projeto.

“Nos últimos seis meses, não trabalhei muito com o Blender, mas já estou a desenvolver o meu próximo projecto e pretendo usá-lo para isso”, afirmou Zilbalodis.

A trajectória do filme sugere que estamos a testemunhar uma mudança no cenário da animação. Se antes o caminho para o sucesso parecia restrito a grandes estúdios, a produção letã prova que criatividade, tecnologia acessível e uma boa história são capazes de desafiar as regras do jogo.

E com Zilbalodis a manter esse caminho, o futuro promete ainda mais surpresas para o cinema de animação independente.

Brasileiro, Tenório é jornalista, assessor de imprensa, correspondente freelancer, professor, poeta e ativista político. Nomeado seis vezes ao prémio Ibest e ao prémio Gandhi de Comunicação, iniciou sua carreira no jornalismo ainda durante a graduação em Geografia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), escrevendo colunas sobre cinema para sites, jornais, revistas e portais do Nordeste e Sudeste do Brasil.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Verified by MonsterInsights