Entrevista aos autores de “Lucky Luke – Um Cowboy no Negócio do Algodão”
Sai hoje em todo o país “Lucky Luke – Um Cowboy no Negócio do Algodão” pela ASA. Os autores responderam a umas perguntas à Dargaud sobre este esperado regresso do cowboy mais rápido que a própria sombra.
Surpresa divina ou presente envenenado?
O nosso cowboy solitário herda uma imensa plantação de algodão na Luisiana! Acolhido pelos plantadores brancos como um dos seus, Lucky Luke vai ter de enfrentar vários obstáculos para redistribuir esta sua herança pelos quinteiros negros. Nesta luta contra os poderosos da região e contra a segregação racial, ele vai ser apoiado, contra todas as expetativas, pelos irmãos Dalton, cujo objetivo inicial todavia era eliminá-lo, e pelos Cajuns, os habitantes brancos do pântano, marginalizados à custa da prosperidade do Sul. Mas será apenas graças à ajuda de uma surpreendente figura do Faroeste que ele vai conseguir efetivamente repor a justiça: um herói de nome Bass Reeves, personagem real que entrou para a História como o primeiro Marshall adjunto negro nomeado a oeste do Mississípi, e um dos melhores «gatilhos» do seu tempo. Uma região, a Luisiana, até agora inexplorada pelo «cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra», uma história que gira em torno de uma amizade incomum e uma sólida base histórica que muito tem a ver com a atualidade: eis alguns dos inesperados ingredientes que dão corpo a esta nova aventura!
Depois do sucesso de Um Cowboy em Paris, a dupla Jul e Achdé assina o seu terceiro álbum de Lucky Luke.
Quatro perguntas a Achdé:
1- Neste álbum, a ação desenrola-se no sul dos Estados Unidos! Com Morris, Lucky Luke nunca se tinha aventurado na Luisiana. Quais foram as suas referências para este álbum?
Na verdade, o nosso herói fez uma passagem muito rápida por Nova Orleães nas cinco primeiras páginas de Subindo o Mississípi. Contudo, nada transparecia do universo segregacionista do Sul nem das plantações. Por isso, para este álbum tive de mergulhar na iconografia de antes e depois da Guerra Civil americana. Aliás, tenho uma boa biblioteca sobre as antigas plantações e sobre a Acádia da Luisiana e as suas paróquias, pois não se diz «município» na Luisiana.
Visto que o Jul descreveu um Sul um pouco mais idealizado, mais E Tudo o Vento Levou, no que diz respeito às personagens, tive também de esmiuçar os códigos de vestuário da Geórgia entre 1859 e 1880. Para os Negros foi tristemente mais simples, já que os infelizes
eram verdadeiramente miseráveis em todos os sentidos da palavra. Cheguei mesmo a censurar-me a mim próprio, de tão insustentáveis
que eram certos clichés, nomeadamente relativos a crianças. Este é um álbum de Lucky Luke e um mínimo de optimismo tem de prevalecer, apesar de se tratar de um tema difícil.
2- As suas caricaturas são muito expressivas! Sente-se perfeitamente a sua antipatia para com aquelas grandes famílias de plantadores, o seu olhar benevolente para com os Cajuns, a sua empatia para com a comunidade negra… Como é que consegue esta proeza gráfica na sua abordagem da caricatura?
Muitos esboços, muitas tentativas falhadas, muito trabalho! Falando mais seriamente, aprendi com Morris e Uderzo que a caraterização de
uma personagem é fundamental: o leitor tem de ficar a saber com quem lida logo na primeira vez que vê a personagem. O rosto tem de deixar transparecer os sentimentos, e muitas vezes isso passa pelos olhos e pela boca. Gostaria naturalmente de ter utilizado mais caricaturas de personagens conhecidas, como Morgan Freeman ou Forest Whitaker, mas essa hipótese foi descartada. Consegui contudo desenhar o verdadeiro Bass Reeves graças a uma das suas duas únicas fotografias em pé. Confesso, por outro lado, que não tive grandes dificuldades em abordar graficamente os Brancos abastados do Sul, grandes proprietários sem qualquer tipo de piedade pelos seus quinteiros negros. Durante a minha última estadia nos Estados Unidos vi o que pode ser o racismo puro e duro, e isso marcou-me. Coloquei portanto neste álbum tudo aquilo que mais abomino: a estupidez, o ódio e a maldade gratuita.
Todavia, a bonomia não significa ser um Adónis. Vejam-se os meus Cajuns: não são nenhuma beleza, mas eu adoro-os! Tenho uma ternura
genuína por esta comunidade corajosa, como de resto o são todos os francófonos americanos! Eles não foram definitivamente escravos (embora para alguns…). Deportados da sua Acádia natal, acabaram por se tornar os párias da Luisiana, perseguidos pelos Anglo-Americanos, incluindo Roosevelt! Quanto às misturas, são normais!
3-Raramente se tinha visto uma tal variedade de emoções em Lucky Luke, aqui várias vezes animado por uma fúria profunda e chegando outras vezes a ter acessos de poesia. A temática deste álbum incitou-o a fazer sair o cowboy da sua fleuma habitual?
Tendo em conta a temática, era inevitável, sendo que Morris teria seguramente lembrado que o nosso cowboy texano vive num Estado
pouco propenso à assimilação de todas aquelas comunidades. Mas, como Goscinny sublinhava, Lucky Luke é um verdadeiro herói do
Oeste, justo e íntegro, baseado nos heróis dos Westerns de Hollywood; por isso, tem de evoluir da mesma forma que os filmes atuais,
em que os protagonistas podem hoje em dia duvidar de si próprios ou porem-se em causa.
Creio, aliás, que neste álbum se atingiu o limite desses estados de alma. Qualquer acréscimo fá-lo-ia perder a sua verdadeira natureza de
herói do Oeste. Quanto à fúria, muito honestamente, eu queria ter ido mais longe, nomeadamente na cena final da receção em casa dos
Quarterhouse. Eu defendi a ideia de que o Lucky Luke de Morris não se teria ficado pelas palavras ao ouvir tantas idiotices e tantas ameaças veladas com base num racismo abominável e enraizado. Mas, enfim, foi provavelmente só vaidade minha…
4-Abordar grandes temas socias faz parte do universo da BD. Lucky Luke, que é uma série humorística, já abordou temas difíceis. Terá o desenho influência na forma como o leitor apreende a história, ainda que esta possa à partida parecer infinitamente séria?
Goscinny era muito hábil na abordagem de temas socias ou de temas que tinham a ver com a alma humana dissimulando-os sob a capa
de uma aventura muito western: Jesse James abordava a cobardia das massas; Os Rivais, as vinganças de família; O Tenrinho, a integração; e assim por diante. Depois, Morris, com o seu talento, propunha-nos a sua galeria de personagens e a sua perfeita técnica de animação, sendo que o conjunto nos oferecia um álbum divertido, ainda que por vezes sério se o analisássemos um pouco mais. São os famosos «níveis de leitura».
Portanto, sim, o desenho influencia objetivamente, e prioritariamente, a perceção do leitor, sobretudo numa série que se quer antes de
mais um pastiche cómico. Lembre-se de que um álbum se descobre sempre pelo desenho: é ele que dá o tom. O humor passa primeiro pelo plano visual, sobretudo nos dias que correm. Não basta uma sucessão de boas palavras para tornar um álbum de Lucky Luke hilariante; isso seria enclausurar o humor num quadro restritivo, numa única mecânica cómica. Não estamos a ler Kierkegaard, que diabo! Em Lucky Luke, o desenho tem justamente por vezes a missão de restabelecer esse equilíbrio em diálogos ou situações demasiado dramáticas, mesmo que isso vá contra a vontade inicial do argumentista. Em França, as pessoas esquecem-se muito queo desenhador também é um autor, digam o quedisserem os teóricos da banda desenhada. Ele tem uma quota-parte de interpretação, tal como a tem um realizador de cinema. Por isso, repito: sem humor gráfico não há Lucky Luke, e não sou o primeiro a dizer isto; quem o disse foi o seu criador, Morris. Aliás, quer uma prova melhor do que esta? Sem ilustrações, este dossiê de imprensa seria
indigesto! (Risos.)
Três perguntas a Jul
1-Em mais de 80 álbuns, a série nunca tinha dado espaço à comunidade negra americana, pese embora a sua importância na história deste país, particularmente no Sul e no Oeste: porquê abordar agora este tema delicado?
Com a comunidade judaica, evocada em A Terra Prometida, os Negros estavam de facto praticamente ausentes do universo de Lucky Luke. Todavia, tiveram um papel considerável após a Guerra de Secessão. No Faroeste, um em cada três cowboys era negro, e eu achei que seria magnífico dar conta disso através de uma história de amizade entre Lucky Luke e um herói, antigo escravo, que existiu na realidade.
A sua ligação a questões candentes da atualidade é fortuita, mas não a vontade de oferecer uma história comum e unificadora em torno desta questão racial, nem o desejo de dar uma visibilidade e um papel de primeiro plano a personagens negras numa série que é um verdadeiro património e que toca um público muito vasto, tanto jovem como adulto.
2-Não foi difícil conservar o tom de comédia e de aventura próprios dos álbuns de Lucky Luke sem adoçar a cruel realidade histórica?
Esse era para mim o principal desafio: manter esse gosto por uma ação empolgante e por uma sucessão de gags que constitui a «marca
registada» do universo de Morris e Goscinny…
As paisagens da Luisiana permitiram que nos mantivéssemos profundamente americanos e que ao mesmo tempo explorássemos ambientes ricos em potencialidades de ação e em suspense… Esse Sul mítico, tão patente no cinema ou na literatura – de E Tudo o Vento Levou a Django Libertado, passando pelas aventuras de Tom Sawyer –, era um terreno de jogo ideal para Achdé, que deu livre curso
à genialidade do seu traço. Quanto à dimensão cómica, são os Dalton que a protagonizam: completamente a leste do início ao fim da aventura (eles ficam convencidos até ao fim de que os Cajuns são mexicanos e de que o Ku Klux Klan é uma tribo de índios!), os Daltons são perfeitos para equilibrar esta história, que de outra forma poderia ser sobretudo uma história pungente.
3-Começar o álbum fazendo de Lucky Luke um plantador de algodão numa sociedade esclavagista, não é um pouco provocador?
Este álbum é fiel à tradição da série Lucky Luke, na qual personagens reais e acontecimentos históricos servem de ponto de partida para o argumento, mas encerra também uma verdadeira renovação na forma de abordar estas aventuras… Normalmente a estrutura é simples: há um problema, Lucky Luke chega, resolve o problema e volta a partir em direção ao sol poente montado no seu Jolly Jumper…
Desta vez era preciso uma estrutura complexa, onde o cowboy solitário não fosse forçosamente o salvador, onde seriam outras personagens que viriam em seu socorro, onde os Dalton se tornassem quase «simpáticos» face a outros bem mais maldosos do que eles, onde Lucky Luke perdesse um pouco as suas referências numa civilização que lhe era desconhecida, apesar de profundamente americana… A minha esperança é que isso o possa tornar apaixonante e divertido aos olhos dos futuros leitores!
Duas perguntas a Pauline Mermet (Editora de Lucky Luke)
1-O Lucky Luke foi criado em 1946. Porque é que é preciso continuar a publicar as suas aventuras hoje em dia?
Publicar Lucky Luke hoje em dia é perpetuar um sonho, o sonho de Morris que, sendo criança, belga e oriundo de um meio bastante convencional, sonhou com um Oeste imaginado e que, sendo um virtuoso do desenho, o colocou em imagens criando um cowboy cantante.
É lembrar um encontro decisivo com René Goscinny: encontro de amigos e fogo de artifício criativo para a partilha e exaltação dessa visão de um Faroeste iconoclasta. E esse sonho é um tesouro inestimável, pois transmite-se de geração em geração há mais de setenta e cinco
anos! Isso implica responsabilidades editoriais: não trair o espírito, manter o grau de exigência e continuar a fazer sonhar, refletir, rir.
2-Precisamente a esse propósito, qual é então a receita para um álbum de sucesso do Lucky Luke?
Isso é uma pergunta vastíssima! É preciso um bom argumentista, um bom desenhador e um bom colorista. E aproveito para saudar o trabalho e o empenho indefetíveis de Jul, Achdé e Mel neste álbum.
Depois, cada leitor terá um álbum preferido e uma resposta diferente a essa pergunta. Se eu analisar aquilo que mais me agrada nesta série, para além dos fabulosamente tontos e malvados Dalton, será por um lado quando ela encontra a história e a geografia dos Estados Unidos e, por outro, quando algumas personagens fortes fazem frente a Lucky Luke. Sob este ponto de vista, Um Cowboy no Negócio do Algodão satisfaz as minhas expetativas, uma vez que aí descobrimos a Luisiana e os seus tristes costumes, e a personagem de Bass Reeves. Este álbum é diferente a vários títulos, já que assenta na tradição da série mas aborda um tema inédito, que infelizmente muito tem a ver com a atualidade recente.
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Co-criador e administrador do Central Comics desde 2001. É também legendador e paginador de banda desenhada, e ocasionalmente argumentista.
Fantástica entrevista…Bem se vê que o desenhador é um homem ilustrado, muito capa para a tarefa que lhe foi encomendada… manter vivo Lucky Luke não é fácil!