Cinema: Crítica – Blonde
Quando se pensa em Andrew Dominik vem à memória o seu trabalho voltado para o estudo de personagens masculinas, como The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford (2007), sempre com um tom subversivo e desconstrutivo em torno destas figuras, que ganham vida no grande ecrã. Por isso foi com alguma curiosidade que assimilei o anúncio da realização de Blonde, mais uma investida no recorte biográfico de uma das mulheres mais importantes do cinema, a seu cargo.
Esta longa-metragem é produzida pela Plan B Entertainment e distribuída pela Netflix, que após vários anos de adiamentos sucessivos consegue uma janela de lançamento mundial. Sendo uma adaptação não literal, de um livro de mesmo nome da autora Joyce Carol Oates, essa mesma obra é um trabalho de ficção, que embora se entrelace com vários factos comprovados, deve ser tratada como isso mesmo, uma visão ficcionada de quem foi Monroe.
Com pouco tempo desde a sua estreia é já seguro dizer que Blonde abalou a indústria, desde reações efusivas e divisivas por parte do público até às polémicas que extrapolam para questões sociais, com grande debate, na atualidade. Antes de mais é importante referir que, o ícone de cinema que é Marilyn Monroe sempre me foi de alguma forma distante, no que toca a atuações, apesar de a encontrar, fugazmente, em obras como All About Eve (1950).
Contudo é, e creio que falo pela maioria das pessoas, na cultura popular que a sua imagem e presença se difundiu exponencialmente, ao ponto da sua silhueta ser universalmente reconhecida. O que com isto quero dizer é que não sou o maior conhecedor e analista da veracidade dos acontecimentos aqui retratados, logo esta crítica irá ser um reflexo disso mesmo. Em Blonde, Dominik emprega a clássica fórmula de como estruturar uma cine-biografia, sendo a ação narrada em forma de recorte íntimo, de alguns dos momentos mais marcantes da vida e obra da atriz.
Remonta para a sua infância, onde conhecemos uma faceta desconsiderada pela própria cultura que a emancipou, a de Norma Jeane. Um retrato do trágico passado da atriz, particularmente na relação conturbada com a sua mãe, Gladys (Julianne Nicholson), mentalmente instável, e de como isso se refletiu na sua antecipada ascensão na indústria. Dominik não esquece, também, o impacto que a ausência do manto paternal teve na maneira como Monroe se posicionava e relacionava com as diferentes figuras masculinas que por si passaram, algo que é certeiramente transposto nesta obra.
Blonde
Nas quase três horas de duração do filme, a narrativa investe em maior profundidade, na década dourada americana de 50s, onde o auge da carreira é o destaque principal. Graças à cedência da MGM dos direitos de exibição das produções em que Marilyn participou, é possível comparar a versão glamourizada (para além de dar algum realismo) com a versão mais pessoal de Jeane, com a qual esta versão se debruça a dissecar. Não é fácil abordar alguns dos temas que Blonde traz para cima da mesa, não apenas pela controvérsia em si, mas porque dependerá em grande medida do ponto de vista escolhido por cada um.
A vasta escolha de cenas de nudez e de cariz sexual pode ser vista como excessiva e sem propósito, como também, e vendo do prisma de recontar eventos, como um espelho daquilo que Monroe pode ter vivenciado ao entrar e se manter à tona em Hollywood. Caberá por ficar ao critério de cada espetador ponderar quanto àquilo que espera ou não de mais uma versão cine-biográfica de Marilyn Monroe, no meio de tantas que seguem o mesmo rumo criativo. O que para 2022, e considerando o reportório de Dominik, poderia muito bem ter optado por outra via diferente, uma pouco falada (até porque toda a campanha comercial até então demonstrava tal façanha), mas está longe de o ser.
Contém vários momentos pautados pela degradação do corpo de Monroe, entre tantas outras cenas impactantes e visualmente agressivas, o que justificou a escolha NC-17 (não apropriado a menores de idade), o primeiro filme a ser lançado em streaming com tal recomendação etária. Por detrás disto está uma atriz talentosa que deu vida à diva do cinema. As escolhas de casting são muito importantes neste tipo de filmes, pois há todo um jogo que se tem de fazer entre priorizar as parecenças físicas de quem se quer retratar, como aquelas psicológicas, somente visíveis nos maneirismos e linhas de diálogo.
No caso, Ana de Armas devolve o seu melhor papel enquanto atriz, numa produção problemática diga-se de passagem, pois a sua presença causou algum descontentamento a um grupo que considerava tal escolha inadequada por não ser natural norte-americana. Posto isso de parte, provou-se que não passavam de críticas infundadas, pois é, sem qualquer hesitação, o melhor atributo de Blonde em todos os níveis, é inquestionável. Uma atuação digna de louvor nas próximas grandes premiações, conseguindo recriar ao mais ínfimo detalhe como Marilyn se comportava à frente e atrás dos holofotes.
Graças ao elevado valor de produção, o filme é recheado de vestuário, maquilhagem e adereços, tudo aquilo que se espera desta era hollywoodiana e da atitude extravagante da estrela de cinema em causa. Se somarmos a isto uma cinematografia primorosa, particularmente na composição da fotografia, temos um dos filmes mais visualmente bem conseguidos deste ano, senão da década. Até na experiência de exibição, Blonde teria sido favorecido por uma estreia nos grandes ecrãs, tendo inúmeras cenas a replicar momentos icónicos, como o momento do vestido branco, em The Seven Year Itch (1955).
As virtudes que apontei, ainda que notórias, acabam por ser conflitantes com aquilo que são certas escolhas artísticas. A própria duração do filme leva muito tempo em certos aspetos, a meu ver, pouco relevantes, enquanto que noutros a justificação sabe a pouco, claros exemplos, são os momentos que envolvem a sua ligação com o cineasta Billy Wilder (Ravil Isyanov), nas gravações de Some Like It Hot (1959), e com o argumentista e ex-marido Arthur Miller (Adrien Brody). Consequentemente sai em prejuízo o mau encadeamento do filme, onde um corte mais condensado, teria amenizado alguns dos problemas encontrados na edição e no ritmo.
Blonde prometia muito, sobretudo em desmistificar todo o charme exagerado, e desmedido apelo sexual em volta de Marilyn Monroe. Na prática é o oposto, repetindo os mesmos lances que tantas outras cine-biográficas e, até, documentários proliferaram na indústria desde sempre, que contribuiu para que hoje o público tenha uma versão maniqueísta de quem foi e é a mulher por detrás dos vestidos exuberantes, Norma Jeane.
Porém, é inegável a magnifica atuação e qualidade ao nível técnico que a realização se presta a montar num típico lançamento em streaming. Um filme, senão o mais, polémico do ano até ao momento, que virtudes e defeitos à parte, marcará uma nova e próspera fase na carreira de Ana de Armas, à custa da interpretação de outra trágica.
Nota: 5/10
Alguém que vê de tudo um pouco, do que se faz no mundo da Sétima Arte, um generalista por natureza. Mas que dispensa um musical ou comédia