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Cinema: Crítica – Assassinos da Lua das Flores

Ausente desde a sua última estreia com The Irishman (2019) na Netflix, um dos mais conceituados cineastas americanos da atualidade regressa ao espaço habitual das salas de cinema. Esta que é uma produção da Apple Studios e da Sikelia Productions, entre outras, sendo distribuída localmente pela Paramount Pictures e digitalmente (numa data a ser confirmada) pela Apple TV+.

De facto, Martin Scorsese mantém também o ritmo constante de conjugar uma nova produção com uma adaptação literária para o grande ecrã, desta vez abraçando um dos nomes mais sonantes dos últimos tempos, David Grann. Cujos livros já renderam uma adaptação distinta pelas mãos de James Gray em 2017. 

Nesse mesmo ano, Scorsese adquire os direitos para adaptar cinematograficamente Killers of the Flower Moon (ou em Portugal, Assassinos da Lua das Flores), o seu vigésimo sétimo filme, que pela primeira vez conta com os dois atores que mais trabalharam consigo em papéis titulares, refiro-me a Robert De Niro e a Leonardo DiCaprio, sendo estes os nomes mais sonantes do elenco.

A abordagem desta crítica vai passar também pela questão de adaptação, visto estar familiarizado com o livro base (do qual a distribuidora teve a generosidade de oferecer uma cópia, da edição portuguesa, aquando do visionamento), tentando assim trazer esta perspectiva distante, talvez, das restantes análises ao filme.

A Análise:

De maneira sucinta, esta longa-metragem toma como ponto de partida, a súbita explosão de riqueza que tomou conta do povo indígena Osage, no estado de Oklahoma, há um século atrás. De como aquele povo, até então bastante ligado ao que a natureza tinha a oferecer e a modos de vida mais rudimentares, é absorvido pela bonança capitalista, que a descoberta do petróleo naquela região lhes proporcionou. Inclusive, um dos factos destacados, tanto no livro como no filme, é que durante determinado período, a abundância era tal que chegaram a ser o povo com maior PIB per capita do mundo, tendo até ostentação de vários carros de topo, um luxo à distância do comum americano da época. 

É neste enquadramento que se inicia a grande conspiração que despertou a curiosidade do autor do livro, aqui adaptado. De um lado, temos o núcleo de Molly (Lily Gladstone) e restantes irmãs (Cara Jade Myers, Jillian Dion) e mãe (Tantoo Cardinal), importantes na comunidade índia, cuja vida pacata começa a ser abalada com a chegada progressiva do ‘homem branco’ que vê nelas, e no geral da população, uma oportunidade rápida de enriquecimento, quer trabalhando diretamente para os Osage, quer nas petrolíferas.

Mas é com a vinda de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), natural norte-americano, que a aproximação do mal avança a passos largos, pois um romance, à primeira vista espontâneo, para com Molly, se desenrola.

Na sombra desse súbito entrelaçar amoroso está William Hale (Robert De Niro), uma proeminente figura, um quase rei autointitulado, tio de Ernest, que ao longo do tempo se infiltrou dentro da comunidade Osage, ganhando a sua confiança e lealdade, sendo acarinhado por todos com grande veemência e admiração. Sem entrar em muitos detalhes, tendo em consideração quem desconhece totalmente o pano de fundo dos factos: forma-se uma teia engenhosa de relações de poder corrupto e manipulação entre quem quer se aproveitar da conjetura, e daqueles oprimidos que tudo farão para sobreviver e descobrir quem está por detrás dos assassinatos horrendos que se amontoam.  

David Grann é conhecido pelos projetos de jornalismo investigativo, não ficcionados, pelo que Killers of the Flower Moon é fruto disso mesmo, sendo bastante descritivo ao nível de um quase documentário histórico. Scorsese agarra nesta chance para envergar numa obra de grandes valores de produção, de um típico filme de época (tal como fez em Gangs of New York, 2005), pelo que a caracterização da década de 1920s, em particular das cidades à faroeste que se foram construindo, em torno da súbita emancipação à civilização por parte dos Osage, é bastante fidedigna àquela reportada no livro, com elevada precisão.

O filme tem esse cuidado de, aos poucos, criar uma apresentação encadeada de como os indígenas se adequaram a esta nova realidade, quais os seus hábitos e dinâmicas de poder. Para que aquando do segundo ato tudo surja de modo orgânico. Embora com direitos a residuais da exploração de petróleo naquela região, o povo nativo é cativo quanto ao uso do dinheiro que lhe é reservado, tendo guardians, espécie de tutores, à qual devem prestar obediência . Isto cria uma atmosfera de presa à mercê de predadores esfomeados, pois por mais livres que os Osage sejam, há sempre um clima de intriga à espreita. É um sentimento que assombra toda experiência de Killers of the Flower Moon, além da forma macabra e fria de como os crimes foram executados. 

Contudo, ao contrário do livro, o filme não aprofunda muito mais do que isto, o que é compreensível. A narrativa dá primazia ao olhar sob o ponto de vista de Ernest e Molly. À forma como reagem aos sucessivos assassinatos e à medida que a sua relação se vai deteriorando, em simultâneo. Isto é sobretudo verdade, quando na fonte original, Ernest não passa sequer de alguém secundário, enquanto que aqui tem o papel titular do filme, isto claro, transforma a longa metragem em algo diferente. Há momentos novos acrescentados, outros modificados e outros simplesmente inexistentes, tudo em prol de colocar o par romântico, um pouco forçado, no epicentro da história. O que não é necessariamente mau.

Isto que referi corresponde a cerca de dois terços do livro, mas onde se vê mudanças significativas, para pior, é no que diz respeito à criação do FBI e respetiva investigação (não fosse esta uma parte patente do subtítulo da obra literária). Aqui pouco ou nada é abordado para lá de uma menção, estilo piscar de olhos, a J. Edgar Hoover, isso é tudo deixado de lado. A personagem de Tom White (Jesse Plemons), uma das poucas que podemos chamar quase co-protagonista do livro, entra em cena na mesma velocidade que é encostado para fora, perto do clímax. E a sua importância para o desenvolvimento da averiguação dos homicídios é de extrema relevância, particularmente, o processo investigativo, que aqui também pouco ou nenhum espaço tem.

O que tira um pouco a “credibilidade” para o espetador, de como o FBI chegou a determinadas conclusões, tudo em nome de empurrar para a frente a história adiante. O argumento, que contou também com a colaboração de Eric Roth, optou por esta decisão criativa, favorecendo quem quer uma história onde o bem e o mal estão bem realçados, mas prejudicando quem procura um aprofundamento histórico e verídico de como tudo se sucedeu: de como os Osage ascenderam em prosperidade e rapidamente sendo assombrados pela desgraça da morte. 

Ao nível de realização e do departamento técnico, Scorsese foge um pouco à norma, sendo bastante experimentalista nas técnicas que traz ao de cima, o que dá a Killers of the Flower Moon um charme único, face à sua vasta filmografia, onde é possível encontrar um pouco de tudo, desde os panoramas em aberto pela vibrante paisagem indígena aos momentos de tensão em espaços escuros e enclausurados. É um primor cinematográfico, com o contributo dos movimentos e filtros, somente possíveis pela mente de Rodrigo Prieto, algo que já é uma imagem de marca do cineasta em trabalhos passados, não surpreende por isso, é algo esperado. 

É um filme longo, o segundo mais longo do realizador, com aproximadamente três horas e meia, bastante denso em nomes e locais, o que pode ser um pouco overwhelming para quem procura uma experiência mais condensada. Mas tudo o que está lá tem o seu papel a cumprir e o pay-off final é mais do favorecido por isso. Não fui o maior fã de onde Scorsese escolheu terminar o filme, ou seja onde parou na adaptação do livro, mais poderia ter sido dito, caso outras secções tivessem sofrido um corte na sala de edição. Dito isto tudo, de forma bastante louvável, a forma como o ritmo é encadeado acaba por ser o ‘calcanhar de Aquiles’ desta longa-metragem. Ainda assim, o desfecho, é um convite para reflexão coletiva, talvez o único trabalho de Scorsese que quer ter esse papel ativo, que vai além das salas de cinema. 

Essa camada que nos leva a pensar, é consequência dos horrendos crimes desumanos que durante as três horas somos levados a assistir, não sendo algo gratuito, nem tão pouco mero shockvalue. Isto só é possível em conjugação com as atuações, que são o ponto mais forte desta produção. Com dois atores mais do que veteranos em cima da mesa, cujos desempenhos são ambos pontos altos para as suas carreiras, especialmente de DiCaprio que facilmente levará vários prêmios para casa. Enquanto que este último se transforma sempre que está em cena , talvez das personagens mais trágicas e desafiantes interpretadas por si. Já Hale é retratado como um homem cínico, que mesmo nos últimos instantes mantém-se iludido, algo que é bastante fidedigno ao perfil sociopata apresentado no livro.

Conclusão:

Killers of the Flower Moon é um dos grandes destaques do ano, a meu ver, mais bem conseguido de todos até ao momento. Não apenas por todos os aspectos esperados, desde as atuações emocionalmente poderosas, às questões técnicas sublimes aos altos valores de produção. Mas é sobretudo pelo seu papel social, pois tal como, na cultura popular, série de Watchmen (2019) foi importantíssima para reviver na consciência coletiva a tragédia do massacre de Tulsa (por acaso, também mencionado no filme), este traz para os holofotes todo o peso dos assassinatos do povo Osage em nome da ganância, que o próprio David Grann não queria que fosse varrido da memória da História americana. Scorsese agarrou neste livro e a partir da sua importância no meio audiovisual, deu voz a quem se julgava estar esquecido. É em todos os aspectos uma longa-metragem culturalmente pertinente e cinematograficamente inesquecível, que cuja cena final incentiva o espetador a ir além do entretenimento, servindo até como crítica para a relativização destes tão horrendos acontecimentos. 

Classificação: 10/10

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