BD: Crítica – March – Um relato na primeira pessoa dos acontecimentos que mudaram as nossas vidas!
March: Book One é provavelmente a novela gráfica mais mediática de 2013 (pelo menos nos EUA). Este é o primeiro de 3 volumes e tem recebido criticas positivas desde que foi editado e recentemente até foi oferecido a todos os membros do congresso Norte-Americano. Muitos vêem nele, uma fonte de inspiração para os mais jovens e uma forma de relembrar acontecimentos que nunca devem ser esquecidos.
- Mas será que merece toda a atenção que tem recebido?
Vamos deixar a resposta a esta pergunta para mais tarde. Por enquanto, vamos falar um pouco da história deste livro.
Neste March: Book One somos guiados pelo senador Americano John Lewis ao longo de alguns episódios da sua luta pelos direitos civis e humanos e a alguns acontecimentos que estiveram no início da formação do movimento estudantil de Nashville, que posteriormente culmina no celebre discurso de Martin Luther King
Existe uma narração auto-biográfica que feita na primeira pessoa em que John Lewis (com a ajuda de Andrew Aydin e com os desenhos de Nate Powell) conta a forma como viveu e sentiu esses acontecimentos.
John Lewis é proveniente de uma família pobre, que viveu numa quinta onde tomava conta dos animais e fugia aos pais para ir à escola. Lewis dedica algumas páginas a narrar a forma como ele desenvolveu uma relação muito próxima com as galinhas da sua quinta. Ele deu um nome a cada galinha, era capaz de as reconhecer a todas e sofria muito quando elas acabavam no prato da mesa de jantar.
Esta passagem não é muito interessante de ler, mas nota-se que os autores deste livro querem vincar que é mais fácil nos desprendermos do que não conhecemos do que daquilo que nos é próximo e de que gostamos.
O jovem Lewis, é incapaz de comer um prato com galinha em sua casa, mas numa viagem que faz com o seu tio, já consegue jantar um belo prato com esse galináceo.
Como leitor, não achei que este episódio tenha sido bem escolhido, nem me pareceu particularmente inspirado. Mas o tom do livro também não é muito intenso ou cheio de garra. São 121 páginas com uma história contada em “lume brando” ao sabor dos episódios que os autores consideram relevantes para vincar a mensagem que inspira a existência deste livro.
A mensagem deste episódio é muito relevante no contexto geral do livro em que os autores demonstram que existe um divisão muito clara entre brancos e afro-americanos. Ambas as facções estão tão distantes que não se conhecem verdadeiramente e isso, facilita a existência e permanência dos preconceitos e a forma como os brancos tratam os “pretos”.
- A forma que a geração de John Lewis escolhe para ultrapassar este desconhecimento é seguir o caminho da resistência passiva e acção não violenta.
O Movimento Estudantil de Nashville, do qual o jovem John Lewis fez parte, começa a juntar jovens ansiosos por mudanças na sociedade em que vivem e por mais igualdade de direitos.
Este movimento desenhou um plano de acção que começou com reuniões em que treinavam a resistência passiva e acção não-violenta. Os jovens deste movimento desafiavam-se mutuamente a não responder a provocações. Nestes “treinos” alguns conseguiam manter a calma, mas outros não conseguiam aguentar este tratamento (alguns destes jovens que também desejavam a mudança de mentalidades eram brancos).
O passo seguinte, foi organizar vários grupos de jovens que iam a um restaurante (aleatório), sentavam-se ao balcão e pediam para ser servidos. No início, os empregados de balcão recusavam-se a atende-los e eram directos a dizer que não serviam negros ou inventavam desculpas para não os servir. Em alguns casos, aconteceram situações de violência física e ficamos a conhecer um pouco melhor os “argumentos e indignações dos brancos”.
Esta determinação, foi levada ao limite e estes Agentes de Mudança foram inclusivamente presos (sem justa causa). Os vários elementos destes grupos, foram sendo colocados em celas e para saírem teriam que pagar cauções, que se recusaram a pagar. Inevitavelmente as esquadras locais ficaram com as celas todas ocupadas e tiveram que libertar estes “reclusos” sem que fosse paga qualquer caução.
Apesar da violência física e verbal e de todos os entraves culturais e sociais (alguns dentro da própria cultura afro-americana) esta geração prossegue o seu caminho e encontra motivação em todas as pequenas vitorias. Era uma felicidade chegar ao fim de um “sit-in” (estar sentado no balcão durante algumas horas sem ser atendido) sem responder às provocações. Era a demonstração de que queriam abrir um novo capitulo na história da relação entre ambas as facções que durante tanto tempo estiverem em campos desiguais e a prova de que fazendo as coisas de forma diferente iam conseguir mudar a sociedade e torná-la no que eles sonhavam.
A 19 de Abril de 1960, a sede do movimento de estudantes é atacada e milhares de pessoas juntam-se na praça central de Nashvile para reivindicar um tratamento igualitário. Esta manifestação, que culmina com a declaração do mayor da cidade, a pedir aos cidadãos que mudem a sua atitude e que a segregação de afro-americanos termine.
John Lewis conta-nos que as resistências à mudança e os preconceitos existiam tanto nos brancos como nos Afro-Americanos e que estes últimos, se acomodaram à sua situação e que não desejavam verdadeiramente colocar-se em pé de igualdade com o resto da sociedade. Esta geração, e estes jovens em concreto, tiveram que mudar a mentalidade de toda a sociedade incluindo a mentalidade dos seus pais!
- Às 3:15h de 10 de Maio de 1960 seis restaurantes atendem aos pedidos de afro-americanos pela primeira vez na história da cidade de Nashvile – e assim se muda de capítulo na história.
Existe uma grande riqueza histórica nos acontecimentos retratados neste livro e isso leva a que eu recomende a leitura do mesmo. São vários os acontecimentos relevantes contados pelos autores deste livro e muito do que lemos, teve um enorme impacto na sociedade em que vivemos actualmente, até porque o que aconteceu nos EUA acabou por ter reflexos no resto do mundo e já não é possível imaginar a nossa realidade de outra forma.
A arte de Nate Powell está dentro do que nos habituamos em Swallow Me Whole e Any Empire.
Os layouts das páginas são muito fluidos e a forma como desenha as expressões faciais das personagens (e principalmente o seu olhar) imprime ainda mais intensidade aos diferentes momentos, porque conseguimos ver expressões muito definidas nas faces destas personagens que mudaram a nossa história.
No entanto, existe uma discrepância entre o que o livro promete e aquilo que ele cumpre.
O que promete é uma história de uma geração e o que cumpre é uma auto-biografia. Há uma ligeira diferença que leva a que o leitor se sinta um pouco enganado e, tendo em conta todo o impacto que teve nos EUA e todo o mediatismo em torno do livro, parece que houve aqui alguma estratégia política por parte dos autores e da editora.
Quem pega no livro e lê a capa, fica com a ideia que vai encontrar uma história com Martin Luther King, mas este apenas aparece momentaneamente e acaba por ter uma importância marginal em tudo o que é contado.
Apesar de tudo, e sendo este o primeiro volume de 3, parece-me importante aguardar pela publicação dos outros 2 para se poder ter uma opinião mais conclusiva.
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Dário é um fã de cultura pop em geral mas de banda desenhada e cinema em particular. Orgulha-se de não se ter rendido (ainda) às redes sociais.