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Análise BD: Batman Noir

Batman Noir, chegou até nós pela Levoir em 2015, mas continua tão atual e disponível como na altura. Deixamos aqui a nossa análise.

As melhores histórias de Batman sempre envolveram artistas e escritores dotados que legaram à DC obras notáveis e inspiradoras para quem reconhece nas BD’s de alguns Super-heróis os objetos de vulto que distinguem criadores que fizeram mais do que séries fantásticas viradas apenas para um público juvenil, realçando o teor adulto dos contos centrados numa personagem sombria, com um passado trágico, intimamente relacionada com um mundo violento e soturno, sobretudo no que toca à projeção da cidade de Gotham, mergulhada na insegurança constante e obscurecida pela corrupção e o crime.

Batman não tem poderes, mas tem uma mente brilhante e um foco ímpar para combater ou lidar com todos os suspeitos mais perigosos envolvidos em casos complexos que cativam um herói que é, em suma, um excelente detetive. Batman será, por isso, o herói que melhor expressa o universo ficcional que deu origem à DC, ou seja, a histórica revista Detective Comics, publicada inicialmente nos EUA em 1937 (Batman surge, pela primeira vez, no #27 da mesma revista, lançado em 1939.)

Batman Noir

A popularidade de Batman deve-se ao peso dramático de histórias carregadas de ação às quais não poderiam faltar outras personagens incomuns e insólitas, sobretudo vilões cujos nomes e alcunhas descrevem uma dimensão simbólica ou alegórica do estado da sua psique — amiúde desequilibrada ou perturbada — que revelam a profundidade dos seus próprios traumas.

É como se a maioria refletisse o lado reverso da moeda, irracional e descontrolado, que está presente na personalidade do próprio vigilante, racional e controlado, que se serve do seu trauma para fazer um caminho inverso, lutando contra os demónios que o atormentam projetados numa figura de morcego (símbolo do seu próprio medo) para fazer a justiça através dos seus próprios meios.

A história gótica de Dr. Jekyll e Mr. Hyde está de alguma forma constantemente presente em Batman, subentendida  sobretudo no seu eterno confronto com Joker, alegoria da sua Sombra (como facilmente entenderia Carl Jung) que vive para o desafiar e provocar, levando-nos a questionar quando finalmente Batman se irá descontrolar e deixar-se levar pelo pior lado dos seus instintos para liquidar de vez aquele que mais dano trouxe a milhares de vidas inocentes de Gotham.

Batman Noir

Essa história poderia ser reconhecida noutros contos, alguns dos quais merecedores de maior destaque entre as mais marcantes BD’s de Batman, como os fãs bem conhecem, sendo a mais prestigiada Batman: A Piada Mortal (Batman: The Killing Joke, 1988) que levou muitos fãs a perguntarem: «Afinal Batman matou o Joker?» Mas essa questão não deve ser respondida aqui.

O que deve ser prontamente esclarecido em Batman Noir, que expõe três histórias da autoria do artista argentino Eduardo Risso (n. 1959) e que conta com a colaboração do escritor norte-americano Brian Azarello (n. 1962), é que Batman terá sempre um lado profundo e sombrio.

As histórias a preto e branco desta dupla (Risso e Azarello) procuram enaltecer algo que está dentro da melhor tradição iniciada por Frank Miller (n. 1957) — que nos brindou nos anos 80 com o seu Cavaleiro das Trevas mais adulto —, procurando ainda reforçar um sentido de maior realismo que os fãs procuram em séries policiais e nos habituais contos de detetives, habitualmente debruçadas em mistérios próprios de assassinatos para os quais todos procuram um responsável e um motivo. Esse é o propósito essencial do argumento que enriquecem as histórias Cicatrizes e Cidade Destroçada presentes na primeira parte do álbum com mais de 200 páginas de capa dura publicada pela Levoir.

Batman Noir

A terceira história, Noite da Vingança, adquire um tom ainda mais pesado que revela a realidade alternativa que explora o potencial do assassinato do jovem Bruce Wayne em lugar dos seus pais (Thomas e Martha Wayne), que sobrevivem ao ataque, dando origem a um Batman assassino que não é outro senão o pai de Bruce, forçado ao confronto com um Joker cujos jogos psicológicos recorrem ao infanticídio e que é na realidade a transtornada esposa de Thomas Wayne, Martha, tornada num monstro que nunca recuperou do choque da morte do filho.

Cicatrizes (Scars, Batman: Gotham Knights #8, 2003) é uma história muito curta, onde Batman lida com o psicopata Victor Zsasz, um assassino que mata puramente por prazer, marcando no seu corpo os traços que assinalam o seu número de vítimas. Victor Zsasz justifica os seus atos meramente como um sentimento de poder, poder que um herói dedicado a tentar salvar as vidas dos outros põe claramente em causa.

É através de Cicatrizes que temos neste álbum uma introdução da arte de Eduardo Risso, sensível ao poder do suspense e com uma abordagem visual muito sóbria e clara no que toca à representação dos cenários e das personagens, com planos distintos e excelentes contrastes, dominados por tons escuros, evocando a atmosfera sombria que evoca algo de cinematográfico, como as suas páginas correspondessem às cenas de um filme noir. Funciona como uma breve cedência ao lado introspetivo de Bruce, o vigilante mascarado que também carrega as suas próprias cicatrizes, mas procura contrastar em absoluto da cedência aos impulsos sangrentos de Victor Zsasz.

Batman Noir

Cidade Destroçada (Broken City, Batman #620-625, 2005) divide-se em 6 capítulos. É uma história de maior envolvência e extensa complexidade devido ao trama gerado pelo enredo que leva Batman a enfrentar novos e velhos inimigos, lidando com alguns dos piores que procuram controlar negócios ilícitos ou ter relevo na cidade de Gotham, como Pinguim e o gangster Sr. Scarface operado pelo ventríloquo Arnold, que aqui revelam uma faceta mais sinistra do que estamos habituados com outras histórias.

Entre tubarões e peixes miúdos que operam no submundo do crime, Batman procura resolver o assassínio de uma mulher com ligações perigosas, reconhecendo Killer Croc (Crocodilo) como o responsável, mas sem saber o motivo pelo qual alguém o contrataria para o fazer. Neste enredo, a cidade de Gotham é expressivamente representada como desolada e dotada de vários elementos que revelam a sua decadência, catapultando o leitor para uma atmosfera pesada e de elevada tensão que Eduardo Risso procura transmitir sem hesitação, consolidando-se essa visão através da perspetiva crua e direta do argumento de Brian Azarello, onde toda e qualquer ideia ou expectativa de inocência morre.

De alguma forma, o ambiente de Gotham nesta história parece alimentar o nosso cinismo, reforçado pelo papel da chuva quase omnipresente que Bruce não reconhece como as lágrimas de Deus por Gotham, mas antes o sentido de humor negro do destino, dotado de uma perversão que só confirma e antecipa a força da tragédia em que o herói se envolve: O assassinato de outro casal, que tem como testemunha de crime o seu único filho, entrelaça-se com a história de investigação, comprometendo o foco de Bruce Wayne, que volta a reviver os mesmos acontecimentos que o marcaram quando era criança e conduziram à morte dos seus pais.

Evidenciado o papel do trauma e do desconforto vivenciado por Bruce, a história Cidade Destroçada evoca os riscos de um Batman que se revela mais vulnerável física e emocionalmente, dado à perda de foco que o torna falível, contrariamente ao que os fãs reconhecem noutras histórias em que o protagonista revela-se imbatível, como um símbolo da resiliência e da força de vontade que não cede ou recua facilmente diante de jogos mentais.

A sombra do herói, que tem traços de um anti-herói, é sugerida pela própria arte de Risso, fiel à representação dos ambientes escuros. Este lado sombrio, patente em muitos sentidos, destaca uma moralidade ambígua presente num vigilante disposto a quebrar várias regras para levar a cabo os seus intentos, já que espancar inimigos faz parte dos seus métodos habituais para interrogar ou obter respostas, como acontecerá com Killer Croc, tratado de forma severa por um Batman impaciente e frustrado.

Batman Noir

Entre os dilemas e o tormento que atinge Bruce Wayne, podemos não só descrever o impacto do pessimismo em Cidade Destroçada, mas apreciar as cenas repletas de ação e o distinto confronto entre Batman e a dupla de criminosos japoneses Fat Man e Little Boy, com os seus nomes baseados nas duas bombas atómicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki no final da II Guerra Mundial.

Se posteriormente surgem as revelações surpreendentes sobre o assassinato inicial que Batman não descortinou de imediato, ainda surge o impacto dramático de outra denúncia provinda de Joker, expondo o jogo daquele que procura sempre quebrar o protagonista, levando a conclusão da história a um duro sentimento de perda de um herói que toma sobre o peso dos ombros a responsabilidade por falhas difíceis de aceitar ante o caso de contornos trágicos que se dedicou a investigar, forçando-o a assumir que o seu trabalho como vigilante está muito longe de estar terminado.

Noite da Vingança (Flashpoint: Batman Knight of Vengeance #1-3, 2011) provém de uma mini-série publicada em três edições que nos oferece a perspetiva clara de um Batman brutal e vingativo, o anti-herói absoluto que não tem problemas em matar, já que neste caso o manto do vigilante mascarado é assumido pelo atormentado Thomas Wayne perspetivado pelos autores através de uma realidade alternativa que nos apresenta uma cidade de Gotham que em muitas circunstâncias se aproxima daquela com que já nos familiarizamos através de Risso e Azarello.

Os desenhos limpos a preto e branco de Eduardo Risso não se contêm ante a representação de uma violência indiscriminada que é própria de uma história de BD para adultos. Se o Batman de Bruce é descrito como sombrio, o Batman de Thomas é inegavelmente mais obscuro, que nos impõe a reflexão sobre o caos gerado através de uma densa exploração psicológica sobre o lado negro incontido daqueles que lidam de forma mais intensa com a dor e o luto. Entre o confronto de Batman e Joker, ou Thomas e Martha Wayne, que são aqui os principais protagonistas, nada se resume a justiça, mas antes a vingança. Pura vingança.

O álbum traduzido para português de Batman Noir,  publicado há 9 anos atrás a Dezembro de 2015, surge assim como mais uma obra obrigatória dentro de outras exclusividades da Levoir que ainda são possíveis de adquirir nas nossas livrarias, mas que daqui a poucos anos correm o risco de se tornar raridades. Explorar o universo de Batman e as suas histórias alternativas só poderia originar o apreço pelos fãs de uma das principais personagens da DC que conta com um conjunto de edições imperdíveis, dignas de se tornarem intemporais e justamente revisitadas, pelo que esta análise serve de pretexto para fazê-lo, tanto para novos como velhos leitores em busca de algo distinto.

A obra conta com a coordenação de José de Freitas e envolve o trabalho de Rui Alves (grafismos), Hugo Jesus (legendagem), João Miguel Lameiras (tradução) que nos escreveu uma valiosa introdução intitulada justamente: Batman a Preto e Branco ou as Sombras de Eduardo Risso, além da revisão de Filipe Faria.


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Bruno Lourenço

Fascinado por História da Arte e pelo Universo Criativo da Ficção, é um entusiasta consumidor de Banda Desenhada além de leitor assíduo de obras de Ficção Científica e de Terror, com particular predileção pelo Oculto e o Sobrenatural

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