Análise BD: As muitas mortes de Laila Starr
Com um argumento de Ram V (These savage shores, Blue in green) e desenho do português Filipe Andrade (BRK), esta obra, foi nomeada em 2022 para prémio Eisner nas categorias Melhor minissérie, Melhor argumentista, Melhor artista/arte finalista e Melhor colorista.
Acabou por não vencer nenhum, mas deixou-me curioso para ler a obra. No entanto, Filipe venceu o Troféu Central Comics na categoria “Melhor Autor (Português) em Publicação Estrangeira“.
Sinopse:
“A Humanidade está à beira de descobrir a imortalidade. Como resultado, a avatar da Morte é enviada para a Terra para viver uma vida mortal em Bombaim como a jovem Laila Starr. Inconformada com a sua nova mortalidade, Laila arranja forma de descer à Terra no preciso lugar onde o criador da imortalidade nascerá. Irá Laila aproveitar para impedir a humanidade de alterar permanentemente o ciclo da vida, ou irá a morte realmente tornar-se uma coisa do passado?”
“Ram V é um autor de comics galardoado, criador de obras como Grafity’s Wall, These Savage Shores e Blue in Green. Desde a publicação do seu primeiro romance gráfico, em 2016, a obra de Ram foi aclamada pela crítica e venceu uma série de prémios. Além das suas obras originais, Ram também já escreve desde 2018 para a DC Comics e a Marvel Entertainment.
Filipe Andrade é um artista lisboeta. Andrade estudou escultura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e já colaborou e publicou obras para a BOOM! Studios, Marvel Comics, MTV Networks, Riot Games, Passion Animation Studios, e mais. Além das suas obras pessoais, também colabora com a companhia de teatro Auéééu desde 2014.”
Análise:
Ora pela premissa, sabemos que vamos encontrar uma fantasia efémera, um realismo mágico com base em temas como a mortalidade, a humanidade e a busca do homem pela imortalidade com uma boa dose de religião à mistura.
Pois bem, a obra está dividida em cinco capítulos que formam um todo, assim como de uma forma holística, o todo é a soma das suas partes, perceberam? hehe…
Ram Venkatesan ou Ram V como é conhecido, é um autor indiano, talvez por esse motivo esta história se passe na Índia, na sua capital Bombaim.
A personagem principal é Laila Starr que é nada mais nada menos que o avatar da Morte. A Morte é aqui retratada como uma personagem que acaba de perder a sua utilidade ou função, na medida em que após o nascimento de uma criança (o personagem Darius) que irá fazer a descoberta da imortalidade, a morte deixa de fazer sentido.
A reencarnação da Morte no corpo mortal de Laila tem assim por missão contrariar esta premissa, tentando fazer com que Darius não perdure , voltando assim ao ciclo normal e natural da sua função milenar.
Aqui entram todos os tipos de dilemas adjacentes e bem pertinentes do nosso ciclo de vida humano e a perspetiva que temos da morte e o seu depois.
Ram V elabora uma narrativa inteligente onde debate os temas que referi no início com uma prosa bem viciante e uma delicadeza brilhante. Analogias e eufemismos carregados de uma filosofia onírica que retratam os temas de vida e morte de uma forma genial. Percebi claramente a nomeação para Eisner e seria bem merecido.
No entanto, o argumento não deixa de apresentar algumas falhas
nomeadamente na própria filosofia religiosa onde o trabalho mais se apoia que é o Hinduísmo e na própria traição à premissa original da história. Com efeito, existem algumas coisas que não fazem muito sentido, incoerências que embora não retirem qualidade à obra, a tornam menos perfeita. Falo por exemplo da continuação da morte de forma universal sendo que ela está presa num avatar ou da própria ideologia da reencarnação, acrescento ainda o ritmo pausado da obra que por vezes aparenta querer fazer o leitor refletir demais no durante do que no fim.
Mas a ideia era mesmo fazer vários saltos temporais na personagem Laila e as suas várias mortes, acompanhando a evolução da personagem Darius e o seu destino, à medida que se vai fazendo Homem. A transformação que se dá nos dois personagens principais é bonita e cheia de significado. A interação criada pelos personagens é muito bem conseguida e de uma forma mais natural consegue levantar o âmago das tais questões existenciais elevadas ao seu expoente máximo nesta bd cheia de originalidade.
A arte
As ilustrações de Filipe Andrade são espetaculares e muito bonitas. O autor chegou a um nível de excelência que poucos adquirem. Com um estilo moderno, dinâmico e desculpando a minha incongruência; um abstracto polido tal a sensação que se tem de o autor a partir de rabiscos fazer desenhos maravilhosos. A imagética que apresenta é notável e digna de qualquer prémio. Desenho fabuloso, que solta todo o perfume da sua qualidade enquanto artista e que eleva o argumento de Ram V para um patamar acima da média.
A planificação das vinhetas é perfeita criando uma fluidez e uma atmosfera idílica que em conjunto com as cores garridas utilizadas são um regalo visual para qualquer amante de bd.
O ênfase nas expressões dos personagens, os gestos e movimentos que falam,os planos, os contrastes, a luz, a paleta vibrante… que aula de mestre por parte do Filipe Andrade.
A edição da G-Floy traz um dossier extra de 20 páginas com capas alternativas, esboços e arte do autor, textos sobre a obra, etc. com a sua qualidade habitual num formato comic deluxe (18 x 27,5 cm), capa dura, 144 pgs, a cores. Mais uma boa escolha por parte da editora.