Análise: Amor de Perdição – Clássicos da Literatura em BD
A obra máxima de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, foi adaptada para banda desenhada num inédito volume da coleção Clássicos da Literatura em BD. Leiam aqui a nossa análise.
As Adaptações
A novela Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, – consensualmente considerada a obra-prima do escritor – conheceu cinco adaptações para cinema (da primeira, realizada no Brasil por Francisco Santos, existem duas versões: uma de 1914 e outra de 1918).
Ao que pude apurar, a primeira adaptação da narrativa para banda desenhada, em Portugal, é Amor de Perdição – Camilo Castelo Branco, com desenhos de Miguel Jorge (e cor de Patrícia Búzio e Catarina Quintas) e “adaptação e argumento” de João Miguel Lameiras, publicada pela editora Levoir, em outubro de 2021, obra que é objeto de análise neste artigo.
No Brasil, deu à estampa, em 1953, uma versão “em quadrinhos”, a preto e branco, desta novela camiliana, pela mão de Gil Coimbra e com a chancela da EBAL.
Tempos houve, na segunda metade do século XX, em que desenhadores como Eduardo Teixeira Coelho e José Ruy (entre outros) ilustraram obras da nossa literatura. Contudo, mais recentemente, essas adaptações têm sido raras. Quero acreditar que, se tal sucede, não será por desinteresse das editoras ou por falta de público.
Creio antes que um dos motivos (apenas um) por que as recriações de romances e novelas em banda desenhada não são mais frequentes se prende com a dificuldade de condensar uma história de uma extensão considerável em cerca de cinquenta ou sessenta páginas de desenhos e algum texto. A operação obriga a uma violenta compressão do enredo e, sobretudo, compele os autores a fazerem escolhas exasperantes: como é inevitável, convocam-se para as pranchas certos episódios enquanto se prescinde de outros enquanto se tomam outras opções igualmente angustiantes.
É assim que funciona uma adaptação e nada há de errado no processo; e foi o que sucedeu com este Amor de Perdição – Camilo Castelo Branco, de Miguel Jorge e João Miguel Lameiras. É de louvar que, se um dos desafios era construir uma narrativa em imagens e fragmentos de texto em que um leitor pudesse reconstituir o enredo da novela camiliana, a prova foi brilhantemente superada.
A obra
Muitos aspetos da narrativa original se perderam no diálogo entre texto e desenhos; mas nada há a fazer quanto a isso, nem esse facto desmerece o trabalho dos dois autores. Assim, aqueles que lerem este álbum de banda desenhada ficarão com uma ideia clara do essencial do enredo do texto de Amor de Perdição. Mas o trabalho de recriação vai muito além desse objetivo, e o livro de Miguel Jorge e João Miguel Lameiras vale por si, autonomamente. Introduz a imagem e é nela que repousa, centralmente, o grande interesse deste álbum.
Da linha de raciocínio que segui, depreende-se que também não é censurável que, em alguns factos e pormenores, esta adaptação em banda desenhada se afaste da novela de Camilo, na medida em que os autores gozam de liberdade artística quando recriam um texto literário numa nova linguagem.
Daí que não há que entender como gesto de infidelidade a introdução de acontecimentos ou de aspetos que não estão no original camiliano, como o encontro amoroso de Simão e Teresa no jardim da casa de Tadeu, onde os amantes se beijam, o facto de o primo de João da Cruz passar de um arrieiro a criado de quarto de Simão, que traja elegantemente, ou a introdução chistosa de um cocheiro de Domingos Botelho, de nome Ambrósio, lembrando um certo motorista de um famoso anúncio de chocolates.
Há, contudo, uma liberdade criativa do argumentista que, a meu ver, depaupera um pouco esta adaptação, sem, contudo, beliscar a qualidade final do trabalho. Esta liberdade consiste no facto de o texto literário ser reescrito, no “livro aos quadradinhos”, numa linguagem que, em certos momentos, se afasta do original (ainda que noutros passos reproduza o estilo do novelista ou dele se aproxime).
E é pena que tal suceda porque Amor de Perdição brilha pelo engenho do discurso do narrador e pela frescura dos diálogos entre as personagens: tudo é vivacidade e graça no estilo de Camilo! Ora, os casos em que se atualiza a linguagem nesta banda desenhada retiram algum do encanto que esta história tem. É o que acontece quando Domingos Botelho acusa a mulher de “mexer os cordelinhos” ou desabafa nos seguintes termos: “aquele imbecil [i.e., Tadeu] já não me gramava”.
E, como Camilo é admirável a formular ofensas, ficamos com um amargo de boca quando encontramos, neste álbum de BD, Tadeu de Albuquerque e Domingos Botelho a insultarem-se com os prosaicos termos “seu animal” e “sua besta”. Em suma, o álbum ficaria a ganhar se a linguagem fosse sempre a do próprio Camilo ou a de um discurso muito próximo.
No entanto, como antes afirmei, estes são aspetos que não chegam para toldar as imensas virtudes do livro de Miguel Jorge e João Miguel Lameiras, que exibe opções brilhantes na reescrita icónica e verbal da narrativa. Em primeiro lugar, sublinhe-se a beleza do traço que desenha as figuras e as suas expressões faciais, as quais representam de modo verosímil e intenso os sentimentos das personagens. A expressividade dos rostos torna-se mais viva quando, na intensidade dos sentimentos, o desenhador lhes dedica um grande plano que ganha ainda destaque em quadros que se evidenciam graficamente do conjunto da página (ver p. 11, por exemplo).
Igualmente elegantes são a composição e as cores dos cenários, sobretudo os exteriores. Numa história povoada por espaços claustrofóbicos, destacam-se os desenhos dos conventos, mas também dos jardins e do alto mar, nas cenas finais. Mais ainda, a harmonia serena das cores é conferida pelos tons escolhidos: o sépia, os castanhos, os verdes secos e alguns cinzentos contribuem para a reconstituição de uma época e dos palcos onde a ação se desenrola. É bem possível que estes sejam os matizes que melhor caracterizam o período da viragem do final do século XVIII para o XIX. E, no entanto… com que graça emergem os vestidos fidalgos e a sombrinha de Teresa, em que imperam o rosa, o carmim e o branco, que simbolizam a juventude e a frescura inicial da personagem!
Há outras opções engenhosas dos autores que conferem significado e beleza a este reconto de Amor de Perdição no jogo entre imagens e palavras. Uma delas está presente nos momentos em que os desenhos se libertam das vinhetas da prancha e a páginas dupla se torna um palco onde as personagens se deslocam, sendo o movimento representado pela repetição da figura em vários lugares da página. É o que sucede quando Simão se encontra com Teresa no jardim da casa da sua amada (pp. 10-11) ou quando Teresa percorre os corredores labirínticos do convento, acompanhada por diferentes freiras, de modo a permitir ao leitor sentir a passagem do tempo e escutar estes diálogos conventuais (pp. 26-27).
Estes casos em que a página se torna um palco e convoca códigos do teatro recorda-nos, aliás, uma técnica usada por Gianni de Luca na adaptação, para banda desenhada, das peças Hamlet, Romeu e Julieta e A Tempestade (1975-77), publicadas em Portugal num só volume em 1977, pelas Edições CelBrasil. Mas recorda-nos também a técnica usada em pinturas e em ilustrações de livros do final da Idade Média, como, respetivamente, os painéis de As Tentações de Santo Antão, de J. Bosch, ou as iluminuras de certos manuscritos do Roman de Rose, em que se usava uma estratégia pictórica que os estudiosos apelidaram de “deslocamento cinético”.
Na linha de desafio dos códigos tradicionais da banda desenhada, sublinhem-se ainda duas soluções bem conseguidas para representar aspetos cruciais da novela de Camilo. A primeira é a apresentação da família de Simão numa “árvore genealógica de retratos”, acompanhada, à margem, por um retrato a preto e branco dos pais e outro dos dois irmãos (p. 4). A segunda opção de aplaudir é a simples reprodução (supostamente) fac-similada de cartas manuscritas de Simão e de Teresa, convocando para as páginas desta banda desenhada a importância que a correspondência epistolar e a palavra escrita têm nesta história.
Amor e Violência
Amor de Perdição é uma novela em que os corações pulsam, o sangue fervilha e as emoções vêm à flor da pele. E, se é certo que se trata de uma narrativa em que o amor impera, a violência segue-o de perto. Os desenhos de Miguel Jorge captam bem um e outro. Anteriormente aludiu-se aos sentimentos das personagens, analise-se, agora, como se representa a violência. E não se agride pouco nem se mata pouco nesta história. O jovem Simão, arruaceiro e estouvado, espanca os habitantes do Coimbra e, na famosa cena da fonte, desanca os seus conterrâneos que tinham açoitado um criado da família.
Quanto a matanças, elenque-se as dos dois criados de Baltasar Coutinho que fazem uma emboscada a Simão, a morte do fidalgo de Castro Daire às mãos do amante de Teresa e o assassinato de João da Cruz. A violência extrema é estilizada. A eliminação dos dois esbirros de Baltasar é representada por códigos que nos lembram os westerns de Sergio Leone. Da morte de João da Cruz, que é obscena – ou seja, que se passa fora de cena, longe do nosso olhar, como nas tragédias gregas –, apenas temos notícia pelas palavras e pela dor de Mariana.
Os Extras
Por último, uma nota para o dossiê de textos que encerra o volume, da autoria do Professor João Paulo Braga, sobre a vida, a época e a obra de Camilo Castelo Branco. Este anexo confere valor ao livro, na medida em que permite ao leitor – e, sobretudo, ao jovem leitor – adquirir informação complementar sobre o contexto em que Amor de Perdição foi escrito, além de ser um contributo que lhe permite construir interpretações fundamentadas da novela de Camilo e da banda desenhada de Lameiras e Miguel Jorge. E o dossiê não é um pormenor de somenos se tivermos em conta que esta é uma obra da História da Literatura Portuguesa que se estuda no Ensino Secundário.
Veredito Final
Em jeito de balancete, reforço a ideia de que esta adaptação de Amor de Perdição se impõe pela beleza do traço e pela harmonia das cores bem como pelo modo como de renovam as técnicas (e se quebra algum protocolo) da banda desenhada.
Numa época em que os mais novos leem cada vez menos, fica formulado o voto de que este livro sirva de acendalha para inflamar o desejo para a leitura da novela camiliana.