Análise: Os Maias – Clássicos da Literatura em Banda Desenhada
É frequente o erro de querer comparar uma obra literária à adaptação cinematográfica que dela se fez. Afirmam muitas vozes deste mundo que um filme não é tão bom como o livro de que partiu. Ou, mais comummente ainda, que uma película não soube ser fiel ao texto literário que lhe estava na base. Na verdade, quando estamos a falar de uma recriação livre de um texto literário numa outra linguagem artística, a fidelidade ao original não deve, não pode, servir de critério de avaliação.
Pela mesma ordem de razão, a apreciação do livro de banda desenhada intitulado Os Maias (ed. Levoir e RTP, 2021), com desenhos de Canizales e texto («adaptação e argumento») do mesmo Canizales, com a colaboração de José de Freitas, deve escusar-se a comparações simplistas e valorativas com o romance homónimo de Eça de Queirós. Um tal método de análise resultaria em conclusões estéreis, que não reconheceriam a autonomia do livro de BD enquanto expressão artística e não valorizariam o trabalho dos autores nesta adaptação da narrativa queirosiana, que, diga-se, foi obra!
O primeiro grande feito que os autores deste livro realizaram, e que não é feito de pouca monta, consiste em condensar o enredo do romance de algumas centenas de páginas em quarenta e quatro pranchas de banda desenhada, conseguindo manter, na articulação entre imagem e texto, o fio narrativo da obra de Eça. Tal significa que, se algum português que não tenha lido Os Maias (creio que ainda os há!) pretender ter um apanhado da narrativa, consegue acompanhar os episódios relevantes do texto queirosiano nas sequências de pequenos quadros que os recriam em desenhos e palavras.
Certo é que alguns momentos do romance, como o jantar no Hotel Central, são apenas muito brevemente aflorados e outros, como os acontecimentos passados nas redações dos jornais A Corneta do Diabo e A Tarde, são omitidos. O processo de condensação implica fazer escolhas; e os autores deste livro decidiram privilegiar a intriga familiar e a amorosa (que, em Os Maias, estão fatalmente ligadas), em detrimento da chamada «crónica de costumes».
Por outro lado, há ligações entre episódios que, pela exigência da brevidade deste reconto em imagens, acabam por resultar em saltos abruptos entre momentos da ação, como acontece na passagem de um encontro entre Carlos e Maria Eduarda para o jantar dos Gouvarinho. Ainda assim, estas mudanças de cenário e de episódio parecem, em certos casos, pensadas (bem pensadas!) segundo as técnicas de corte e de transição do cinema, fazendo pontes subtis através de referências a personagens, motivos ou temas.
No que respeita aos desenhos, Canizales, que é sobretudo ilustrador de livros infantis, colocou o seu traço pessoal ao serviço do reconto de Os Maias em imagens. As figuras humanas não são retratadas de modo realista e alguns leitores podem mesmo considerar que as ilustrações pecam por enveredar por um estilo infantilizado, o que infantilizará a própria narrativa.
Como antes se disse, uma adaptação artística é uma recriação livre, com autonomia e vida própria. E, como afirmou de Buffon, «o estilo é o próprio homem»: quem contratou Canizales para esta empresa artística sabia com o que ia contar. Certas personagens, como Ega, Dâmaso e a Gouvarinho, são pertinentemente retratadas de um modo algo caricatural, o que resulta especialmente bem nos momentos em que a Condessa está irritada e é representada como uma bruxinha má temperamental. Por seu lado, os cenários exteriores e interiores em que a história se desenrola primam pelo contorno que se pretende fidedigno ao real e que se harmoniza bem, pelas cores e pelo traço suave, com as figuras humanas.
Ora, no que respeita à paleta de cores usada nas ilustrações, Canizales optou por tons secos, em muitos casos sépias, castanhos amenos, lilases suaves e cinzentos para reconstituir a atmosfera da Lisboa da segunda metade do século XIX, fazendo, possivelmente, alusão às fotografias de então ou às ilustrações dos jornais, revistas e livros desta época. Algumas cores ganham uma clara conotação simbólica. Os cinzentos são usados para os momentos de narração retrospetiva (analepses), como sucede na recuperação da vida de Pedro da Maia, enquanto os vermelhos são empregues para colorir momentos de paixão e erotismo, quer entre Carlos e a Gouvarinho quer entre este e Maria Eduarda.
Interessante é ainda o modo como as ilustrações se inscrevem na página. Para evitar a monotonia de encaixilhar sempre os desenhos em pequenas molduras retangulares, por vezes, o ilustrador cria na prancha espaços circulares, ogivais ou de outras formas, surpreendendo o leitor e, em alguns casos, sublinhando significados da narrativa. A título de exemplo, na parte final da história, Afonso é retratado, após a sua morte, num caixão que preenche uma vinheta em forma de ogiva, sugerindo os contornos de um barco ou da nave de uma catedral. Nas páginas seguintes, é a vez de Maria Eduarda, primeiro, e Carlos, depois, serem retratados dentro de caixões inscritos em vinhetas ogivais, propondo, possivelmente, a ideia de que, após o fim do seu amor, as duas personagens morrem sentimentalmente.
Uma palavra final para o texto deste livro de banda desenhada. É natural que, a bem da preservação da linha narrativa e da inteligibilidade da história, o texto se afaste, aqui e ali, das palavras do romance de Eça. Todavia, é com desalento que se assiste a uma liberdade excessiva de recriação dos diálogos entre personagens, que, pela falta de brilhantismo e pelo prosaísmo, não prestam homenagem ao estilo do escritor oitocentista e não produzem um resultado admirável. Se a ideia era reescrever as falas das personagens em termos mais prosaicos e mais acessíveis a um público jovem, o esforço não foi bem sucedido. Até porque os diálogos de Eça conservam uma frescura e uma graça que podiam ser reproduzidos neste livro sem prejuízo para a vivacidade e para a «chalaça».
Contas feitas, estão os autores de parabéns por terem realizado esta exigente recriação em banda desenhada do romance de Eça. E, se os desenhos e as cores não agradarem a todos, devemos, contudo, reconhecer que têm identidade e têm garra.