Análise BD: Blast, de Manu Larcenet
Blast, de Manu Larcenet, é um livro incrivelmente profundo, pesado e visceral onde as temáticas sobre a doença mental, a psicologia, a psicopatologia e a forma como percepcionamos a realidade nos deixa a refletir por muito tempo após a leitura.
O autor já dispensa apresentações tendo em conta que por cá, a editora A SEITA já editou O combate quotidiano enquanto a ALA DOS LIVROS editou já O Relatório de Brodeck e A estrada.
São obras magníficas que demonstram a versatilidade do autor, que consegue variar as temáticas e incrivelmente o seu traço e desenho, assim como demonstra o seu talento no branco e negro ou a cores.
Estamos a falar de um verdadeiro mestre da banda desenhada, quer nos argumentos quer no desenho.
Seria excelente que esta obra também fosse editada por cá, mas para já como alternativa, a editora espanhola Norma Editorial apresenta-nos um integral com 816 páginas, numa edição de luxo com capa dura aveludada, papel de elevada gramagem que se adequa na perfeição ao preto e branco da obra e um pormenor delicioso, que faz com que o corte dianteiro tenha a coloração vermelha, talvez para demonstrar o quanto visceral e sangrento psicologicamente é o argumento.
O livro é um “calhamaço monumental” e tem o “ligeiro preço” de 76,45 euros, por isso se pedirem isto ao Pai Natal, convém ele trazer atrelado nas renas. E aproveitem para pedir no vosso banco, um empréstimo com boa taxa de juro e spread baixinho para acabar de pagar em 2030…” it is what it is”ehehehe
A história apresenta-nos um homem de seu nome Polza Mancini que apresenta um aspecto bastante caricato quer pela sua obesidade mórbida quer pelo seu rosto com um enorme nariz que Larcenet nos resolve dar em mais um desenho fora de série e muito peculiar. Polza encontra-se detido numa esquadra de polícia, para um interrogatório, suspeito de um assassinato. Nos últimos meses, este homem viveu em fuga, pelas matas e bosques e completamente rendido ao vício do álcool e depois outras drogas.
Os dois polícias que o estão a interrogar não apresentam qualquer empatia para com este indivíduo, muito pelo contrário, uma repulsa e repugnância ao seu aspecto. Necessitam no entanto do seu depoimento, e Polza revela um carácter demasiado interessante deixando extremamente curioso o leitor, na forma como conta a sua versão da história, e como tudo começou para ele de uma explosão mental a que ele intitula de blast.
À medida que Polza vai contando a sua história, as peças do puzzle vão-se encaixando ou não, e o argumento mirabolante decorre a uma velocidade frenética. Confesso que apesar do livro ter mais de 800 páginas, li-o de uma assentada porque é quase impossível parar de ler para perceber o que acontece a seguir. A história deriva com o que se passa no momento, com flashbacks da infância ou juventude do protagonista e as suas relações familiares, e Larcenet presenteia-nos com um recital de desenhos fantásticos, onde por vezes encontramos uma narrativa visual sem narração e outra com uma narração mais extensa e detalhada dos acontecimentos.
A forma como Larcenet domina as sombras no seu preto e branco fulminante, o jogo de luzes e as perspectivas é genial e a distribuição das vinhetas é também magistral, sendo que os apontamentos de cor aquando os acontecimentos do chamado blast apresentam toda uma subjetividade que nos cabe a nós leitores decifrar.
Claramente Polza apresenta distúrbios psicológicos que o levam a ter comportamentos desadequados, de automutilação, de dependências e relações desestruturadas, mas é fascinante tentar perceber o que é real ou não naquilo que ele nos conta. O cérebro dele funciona de um modo extremamente interessante, mostrando uma inteligência acima da média na forma como percepciona a sociedade ao mesmo tempo que identificamos o contrário nos seus comportamentos.
Por muito que me apeteça falar mais desta obra, não o vou fazer para não estragar o prazer da leitura a quem se atrever a pegar nisto. Só posso dizer que não deixarão de ser surpreendidos com uma história amarga, dura e ao mesmo tempo fascinante que facilmente nos daria um argumento perfeito para uma adaptação a cinema que seria muito bem vinda.
Manu Larcenet continua a surpreender-me com obras inteligentes, argumentos crus, cruéis, distorcidos ou duros sem grande misericórdia para com o leitor e que com os diferentes e mais variados recursos que tem nos seu desenhos faz o que lhe vai na alma sem grandes regras, pois consegue descrever pelas suas mãos, quadros e vinhetas brilhantes onde não faltam detalhes exímios e tinta carregada de emoções fortes.
Mais uma obra a não perder…