Os 20 anos de “Kenai e Koda”
Há vinte anos, a 1º de novembro de 2003, a Disney lançou o filme “Kenai e Koda” (“Irmão Urso”, no Brasil), o 44º longa metragem de animação do estúdio. O filme, realizado por Aaron Blaise e Robert Walker, apresenta uma perspetiva única sobre o crescimento pessoal ao longo da vida, explorando-o de forma mais profunda e complexa do que as produções lançadas na mesma época.
Argumento
O argumento, escrito por uma equipa de cinco argumentistas, Tab Murphy, Steve Bencich, Lorne Cameron, Ron J. Friedman e David Hoselton, concentra-se na jornada de desenvolvimento dos personagens, explorando a transição da infância para a vida adulta. O filme não se limita ao entretenimento, mas mergulha profundamente nos aspetos psicológicos e emocionais da maturidade.
Além disso, destaca os desafios inerentes a essa transição, revelando mudanças de paradigmas, a complexidade da tomada de decisões e a inevitável carga de responsabilidades que acompanham o amadurecimento.
Visibilidade indígena e o protagonismo dos povos originários
Outro ponto importante, abordado pelo argumento, foi a questão da visibilidade indígena, um tema que vem sendo debatido com frequência nos últimos anos. Ao apresentar a cultura xamânica e uma sociedade indígena do final da Era Glacial, similar ao Povo Tlingit; o filme convida-nos a olhar para os povos originários das Américas com respeito e reflexão, questionando nossos próprios estereótipos e preconceitos. Ao desconstruir os estereótipos e preconceitos que ainda existem sobre os povos indígenas, podemos cultivar atitudes mais humanitárias em relação a eles, tanto no presente quanto no futuro.
É importante evitar a repetição dos erros do passado, como o genocídio que quase extinguiu os povos originários norte-americanos. A chegada dos europeus trouxe a violação das terras e a destruição do meio ambiente, e as populações indígenas locais ainda aguardam um pedido de perdão do governo dos Estados Unidos.
A historiadora Fernanda Paixão Pissurno, no artigo “Genocídio indígena nos EUA” para o Info Escola, sublinha a seguinte definição de genocídio: “O genocídio é a deliberada destruição em massa de um grupo étnico, religioso, racial ou nacional.”
A partir dessa definição, ela argumenta que o genocídio indígena no continente americano foi, de facto, um genocídio. Ela cita como exemplos o massacre de comunidades inteiras por meio da ação de exércitos ou por meio de doenças para as quais as populações nativas não tinham resistência.
A historiadora também destaca que o genocídio indígena foi um processo não sistemático e, em grande medida, não planeado. No entanto, isso não o torna menos grave. Ao contrário, torna-o ainda mais terrível, pois demonstra que o genocídio era uma consequência natural da colonização europeia.
Ainda segundo a historiadora, o genocídio indígena não se limitou às mortes por meio militar ou viral.
Com o passar do tempo, os descendentes de europeus desenvolviam técnicas mais sofisticadas para forçar o deslocamento dos povos nativos para longe das terras desejadas, tais como a destruição proposital do habitat natural e a matança de animais essenciais para a subsistência dos povos indígenas, como o bisonte.
Incêndios e conflitos entre diferentes tribos também eram provocados. Além disso, os europeus incentivavam o uso de álcool, que os indígenas muitas vezes não conseguem decompor no seu organismo, e a esterilização forçada.
Semelhante a comunidade abordada na animação, os Tlingit constituíam um grupo indígena das costas do Alasca e do Canadá, com raízes linguísticas e culturais que remontam ao século XIII. Pertenciam a uma das muitas comunidades indígenas que falavam línguas na-dene, incluindo também os Eyak, Ahtna, Dena’ina, Hupa, Apache e Navajo.
A subsistência dos Tlingit estava centrada na pesca e caça, sendo que sua cultura era profundamente influenciada pela interação com a natureza. Para eles, os animais eram considerados como membros da família, e acreditavam que os espíritos naturais desempenhavam um papel crucial no bem-estar da comunidade.
Um clássico esquecido
Infelizmente, “Kenai e Koda” (2003) faz parte da lista de filmes esquecidos pelo público infantil do estúdio de Walt Disney, juntamente com “A Pequena Sereia II: O Regresso ao Mar” (2000), de Jim Kammerud, “Dinossauro” (2000), de Ralph Zondag e Eric Leighton, “Atlântida – O Continente Perdido” (2001), de Gary Trousdale e Kirk Wise, “O Planeta do Tesouro” (2002), de John Musker e Ron Clements, “O Paraíso da Barafunda” (2004), de Will Finn e John Sanford, “Chicken Little” (2005), de Mark Sindall e “Os Robinsons” (2007), de Stephen Anderson.
No entanto, a produção sempre terá um espaço no meu coração. É um dos meus filmes favoritos e um dos que mais assisti quando era criança. Foi graças a ele que conheci e me apaixonei pelo trabalho de Phil Collins, que assina a banda sonora do filme com Mark Mancina.
E não estou só nessa. Para muitos, “Kenai e Koda” é um clássico familiar.
Conexão espiritual
O filme apresenta uma visão das lendas dos povos nativos norte-americanos, explorando a complexa e muitas vezes espiritual relação entre humanos e animais, um fenómeno encontrado em muitas culturas ao redor do mundo. Muitas tribos indígenas norte-americanas acreditam que os animais são seus parentes e que devem ser tratados com respeito. Essa relação é mediada pelo xamanismo, um sistema de crenças e práticas que envolvem a interação com o mundo espiritual, muitas vezes por meio de rituais e meditações. No xamanismo, os animais são frequentemente vistos como guias ou mensageiros espirituais.
Como comentei, essa visão espiritual também acontece de outras formas ao redor do mundo. Por exemplo, os aborígenes australianos acreditam que os animais são espíritos ancestrais que podem assumir forma humana. Muitas tribos africanas acreditam que os animais são portadores de sabedoria e poder espiritual. Algumas culturas asiáticas, como o hinduísmo e o budismo, veem os animais como manifestações de divindades ou forças espirituais.
Por sua vez, algumas tribos sul-americanas acreditam que os animais são guardiões da natureza e que devem ser protegidos.
No Brasil, também é possível encontrar exemplos de relação espiritual entre humanos e animais. Muitas tribos indígenas brasileiras acreditam que os animais são seus ancestrais ou protetores. Além disso, algumas religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, também veem os animais como manifestações de divindades.
Trama
Na trama, os irmãos adolescentes Kenai e Denahi vivem em constantes conflitos, mas recebem orientações do irmão mais velho. Kenai, o caçula, anseia pelo momento em que receberá da xamã do seu povo o amuleto que o tornará adulto. Contudo, ao receber o talismã de urso, símbolo do amor, as suas expectativas não são atendidas, levando-o a desprezar o objeto.
Por conseguinte, o enredo construído a dez mãos é rico em simbolismo e metamorfose, explorando temas de redenção, conexão com a natureza e a interação entre os reinos humano e animal. A transformação de Kenai em urso serve como uma punição, mas também como uma oportunidade de aprendizado e crescimento.
A tragédia inicial, onde Kenai acidentalmente causa a morte do urso e a perda de seu irmão, estabelece o tom emocional do filme. A transformação posterior de Kenai em urso não é apenas física, mas representa uma mudança interna e espiritual. A jornada ao lado de Koda, o filhote de urso, cria uma ponte entre os dois mundos, oferecendo a Kenai uma nova perspectiva sobre a vida selvagem e a importância da empatia.
https://www.youtube.com/watch?v=qPiek7XobgQ
A utilização de flashbacks na narrativa permite uma retrospetiva dos eventos, destacando a evolução do personagem principal e proporcionando uma compreensão mais profunda de suas motivações e arrependimentos. Os olhos melancólicos de Kenai tornam-se uma janela para a sua alma e refletem a complexidade de suas emoções enquanto enfrenta desafios e descobre a verdadeira essência da fraternidade e diversidade.
A ambientação na era em que homens podiam se transformar em animais e vice-versa adiciona uma dimensão mística à história, ligando os personagens com os espíritos ancestrais da floresta. A Corrida do Salmão e a morada dos espíritos são elementos simbólicos que representam a viagem espiritual e a busca pela reconciliação.
O trabalho do grupo de argumentistas transcende a simples narrativa de aventura infantil ao explorar questões mais profundas sobre identidade, perdão e a interconexão entre todas as formas de vida.
A Crítica e os Óscares
Apesar desses aspetos, a crítica não se mostrou muito favorável a essa narrativa. Na época de seu lançamento, o filme recebeu críticas mistas, com elogios à qualidade da animação, mas críticas direcionadas à trama.
O agregador Rotten Tomatoes, por exemplo, reportou que apenas 37% das críticas foram positivas, com base em 131 avaliações. A classificação média foi de 5,5 de 10, sendo considerado um filme ameno e agradável, mas com gráficos considerados genéricos.
No entanto, mesmo diante dessas críticas desfavoráveis, o estúdio optou por seguir adiante com o lançamento de “Kenai e Koda 2”, uma sequela que continua na mesma trajetória do primeiro filme.
Além disso, “Kenai e Koda” recebeu uma nomeação ao Óscar na categoria de Melhor Animação, porém acabou perdendo para outra produção do estúdio Pixar da Disney, “À Procura de Nemo”, de Andrew Stanton.
Phil Collins
Falando em Óscares, vamos falar sobre a parte técnica, mais especificamente da banda sonora composta por Mark Mancina e Phil Collins.
Assim como em “Tarzan” (1999), de Chris Buck e Kevin Lima, que lhe rendeu o Óscar de melhor Canção Original em 2000 com a clássica “You’ll Be in My Heart”, Collins mais uma vez demonstrou sua habilidade em criar uma trilha sonora memorável, repleta de músicas marcantes como “Look Through My Eyes”, “Welcome”, “No Way Out”, “On My Way” e a poderosa “Great Spirits”, interpretada pela incrível Tina Turner.
Quanto à parte instrumental, Mark Mancina desenvolveu composições espiritualistas que intensificam a atmosfera dos acontecimentos.
Animação mimetista
Além da música, a técnica de animação empregada no filme é um elemento crucial para a sua imersão. Os animadores, verdadeiros artesãos, criaram animais e cenários realistas e dinâmicos, que contribuem para a narrativa.
Desde alces e esquilos até seres humanos e ursos, a equipa demonstrou uma habilidade magistral em mimetizar cada elemento. Falando em cenários, estes me deixaram colado ao ecrã. São impressionantes, com geleiras, desertos e vulcões fiéis ao real. A lembrança dessas imagens faz os meus olhos, outrora estudante de geografia, brilharem.
Possível live-action
Enfim, aos fãs, em 2019 surgiu um boato espalhado pelo We Got This Covered de que a Disney está a plaenear um remake em imagem real da produção. A fonte é a mesma que revelou os planos para a sequência de “Aladdin”.
Ao que parece, assim como em “Mogli” (2016), de Jon Favreau, “Dumbo” (2019), de Tim Burton e “O Rei Leão” (2019), de Jon Favreau, o filme terá a presença de atores reais, e os animais serão feitos através de CGI.
Brasileiro, Tenório é jornalista, assessor de imprensa, correspondente freelancer, professor, poeta e ativista político. Nomeado seis vezes ao prémio Ibest e ao prémio Gandhi de Comunicação, iniciou sua carreira no jornalismo ainda durante a graduação em Geografia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), escrevendo colunas sobre cinema para sites, jornais, revistas e portais do Nordeste e Sudeste do Brasil.