Critica BD: Auto Barca do Inferno
A análise ao volume 30 da coleção Clássicos da Literatura em BD, Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, adaptado por João Miguel Lameiras e Joana Afonso, e com dossiê de José Bernardes professor da Universidade de Coimbra.
É um desafio cada vez maior dar a ler as obras da Literatura Portuguesa e universal, aos leitores de hoje, tanto aos adolescentes como aos adultos.
Não que os clássicos tenham perdido a importância que antes tiveram na compreensão da realidade dos nossos dias: na verdade, cada vez mais parece que a arte do passado nos ajuda a interpretar o nosso mundo. Daí que uma adaptação de um texto literário canónico para outra arte (cinema, teatro, pintura, etc.) deva ser hoje vista como um contributo civilizacional, uma peça importante na engrenagem da cultura contemporânea, sobretudo se esta nova obra tiver qualidade e chegar ao grande público.
Esta ideia presidirá à presente recensão crítica sobre a nova versão para banda desenhada de um texto fundamental da Literatura Portuguesa: o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Depois de ter levado às tiras de banda desenhada a novela Amor de Perdição, João Miguel Lameiras (“Adaptação”) cria, desta vez com a artista gráfica Joana Afonso (“Desenho e Cores”), um novo livro para a coleção Clássicos da Literatura em Banda Desenhada, da editora Levoir (s.l., 2023).
E, pelo que antes foi escrito, creio que se deva ver os trinta números já publicados como um contributo relevantíssimo para a formação dos jovens leitores do século XXI e para o alargamento dos seus conhecimentos culturais.
Que venham mais!
Tendo em conta a relativa brevidade do Auto da Barca do Inferno (862 versos, na edição princeps), foi possível aos autores deste livro de BD reproduzirem não só a estrutura desta obra dramática, mas também praticamente todo o texto de Gil Vicente – não que a fidelidade ao original seja um princípio sagrado a seguir numa adaptação de uma obra literária para outra arte (cinema, teatro, etc.).
Por este motivo, este livro tem também uma utilidade didática e pedagógica. Os alunos que estudam esta peça de Gil Vicente encontram aqui uma forma artística motivante – que cruza linguagem verbal e linguagem icónica – para lerem a peça e para a “verem” encenada num “palco” gráfico, que é a página desenhada do livro. E, tendo em conta o facto de o texto do Auto da Barca do Inferno ser reproduzido nesta versão em banda desenhada, como antes se referiu, é oferecida aos mais jovens (e aos menos jovens) a possibilidade de seguir de fio a pavio toda a peça vicentina nestes “quadradinhos”.
De facto, a presente obra acaba por constituir uma proposta de encenação do texto dramático de Gil Vicente. É certo que se trata de uma encenação conservadora, com o cenário tradicional do porto com as duas barcas (embora com uma surpresa no fim) e o guarda-roupa e outros elementos cénicos que remetem para o século XVI. Mas há estratégias bem conseguidas e ousadas nestas pranchas.
Uma delas reside na aproximação das duas formas artísticas (teatro e banda desenhada) quando, magistralmente, os desenhos se libertam da prisão das vinhetas para uma “cena” da peça se espraiar por uma página ou mesmo por uma dupla, como se estivesse a desenrolar-se num palco. É o que sucede na dupla página de abertura, em que vemos o Fidalgo e o Onzeneiro a chegar ao cais das barcas (pp. 4-5).
Noutros casos, encontramos as personagens retratadas mais do que uma vez nesta área desenhada (numa macrovinheta ou numa página) a fim de representar a sua movimentação em cena, como sucede quando o Frade dá uma lição de esgrima ao Diabo (p. 27). Deste modo, confere-se mais dinamismo às personagens e aos acontecimentos e encenam-se os movimentos e os gestos dos “atores” em palco. Se dúvidas houvesse neste piscar de olhos ao teatro, as tiras finais da obra evocam o espetáculo teatral quando o leitor assiste ao cair do pano de boca, vê a plateia a aplaudir e os “atores” a agradecerem.
No entanto, João Miguel Lameiras e Joana Afonso nunca deixam que se perca de vista de que estamos perante uma obra da nona arte (a BD), visto que o desenho assume claramente o protagonismo deste “livro aos quadradinhos”.
No que respeita ao tipo de traço e à paleta de cores usados, a ilustradora optou por representar as personagens numa linha estilizada, algo caricatural, e com cores expressivas: o Fidalgo é balofo e veste-se de forma burlesca; o Onzeneiro e o Sapateiro são atarracados e têm um ar rezingão. Esta representação não mimética (ou seja, não “realista”) das figuras e de outros elementos cénicos acaba por estar em consonância com o tom humorístico da peça e com a índole das personagens criadas por Gil Vicente, que são, em grande medida, caricaturas.
E, se os adolescentes forem o público-alvo deste livro, reconheça-se que esta é uma linguagem gráfica que apela aos seus leitores mais novos… mas também aos menos novos.
Interessante é também todo o bestiário que povoa as páginas deste livro. A página dupla inicial assinala bem o valor simbólico de alguns animais e de figuras do imaginário cristão quando divide as duas páginas abertas em dois espaços, aludindo o da direita alta ao inferno e ao pecado (em tons mais secos, como o castanho) e o da esquerda baixa ao paraíso e à pureza (em cores mais vivas, como o verde da vegetação).
As figuras que encontramos em cada um destes espaços, e que reaparecem ao longo da obra, cristalizam os sentidos que lhes são conferidos pela tradição ocidental:
no primeiro caso, as serpentes, os abutres e uns demoniozinhos rechonchudos; no segundo, os cordeiros, os esquilos, os coelhos e uns anjinhos anafados. O bestiário vai reemergindo ao longo desta BD, em momentos como o da entrada do Judeu, com o bode às costas, ou aquele em que o Parvo insulta e roga pragas ao demónio (p. 20), decidindo os autores retratar numa página inteira a personagem rodeada por um sapo, um coelho e uma cigarra, animais que são referidos nos vitupérios.
Por outro lado, os autores encontraram estratégias engenhosas para dar vivacidade ao texto de Gil Vicente, que assenta numa estrutura repetitiva de cenas de um julgamento, em que dominam a acusação e a defesa (ou seja, a pergunta e a resposta).
Para quebrar uma possível monotonia destes diálogos, recorre-se à técnica da diversificação de pontos de vista e de planos, sobretudo à alternância entre os grandes planos da cena e das suas personagens, englobando grande parte do cenário, e o zoom, que incide, frequentemente, no rosto das diferentes figuras.
E esta estratégia remete-nos claramente para as técnicas cinematográficas. Assim, quando a lente se foca no rosto de uma personagem, somos testemunhas da expressividade da irritação do Sapateiro, do ar admiravelmente trocista do Diabo ou da serenidade do Anjo. Uma palavra apenas sobre o texto desta adaptação do Auto da Barca do Inferno, ou seja, sobre as falas das personagens nos balões criados para o efeito.
A meu ver, justifica-se a opção de dar a ler o texto de Gil Vicente em português contemporâneo (e não em português quinhentista), tendo em conta os fins e os públicos a que se destina. Torna-se, deste modo, a palavra vicentina mais próxima dos leitores e evitam-se dificuldades que podiam emperrar a fluidez que se pretende na leitura de uma obra de banda desenhada.
Certo é que este texto mantém algumas palavras – por exemplo, “pera” (p. 13) em lugar de “para” ou “chantados” (p. 21) em lugar de “sentados” – e algumas expressões ou construções frásicas arcaicas – como “Pera que é escarnecer, quem não havia mais no bem” (p. 13) ou “Sabei que fui da pessoa” (p. 27). Um purista não acharia mal a presença destes arcaísmos linguísticos no texto, mas proporia que fossem registados a itálico, para alertar o leitor para o facto de se tratar de… arcaísmos.
Quanto à forma do texto, devido ao formato gráfico variável dos balões de fala, é natural que se perca, em muitos casos, a disposição em versos de Gil Vicente, que, ainda assim, é frequentemente respeitada.
O fim desta “representação” é tão subtil quanto brilhante.
Na antepenúltima e na penúltima páginas da obra, os autores recorrem, de novo, à técnica cinematográfica para nos dar um grande plano do “cais infernal” onde são julgadas as personagens deste Auto da Barca do Inferno.
É então que surge perante os nossos olhos uma versão em banda desenhada da pintura A Ilha dos Mortos, de Arnold Böcklin. Ou seja, com este golpe de asa, nesta versão desenhada da peça vicentina, o lugar onde decorre o Juízo Final é na ilha imaginada pelo pintor simbolista suíço. Neste final, as barcas enchem-se com as figuras do auto e cada qual zarpa para o seu destino: o Paraíso ou o Inferno.
Uma palavra final
para o dossiê informativo que o Professor Cardoso Bernardes, da Universidade de Coimbra, um especialista em Gil Vicente, preparou para este livro. Este suplemento tem o mérito de ter informação útil e de grande qualidade, apresentada com uma linguagem acessível ao grande público, sobre aspetos como a vida e a obra do dramaturgo, a peça ou a “finalidade” dos autos vicentinos.
Termino saudando esta nova adaptação de Auto da Barca do Inferno para banda desenhada e louvando a vivacidade e a expressividade que os desenhos conseguiram dar ao texto. Creio que esta versão ilustrada consegue motivar o leitor para a leitura deste clássico da Literatura Portuguesa. Além disso, por tudo o que foi dito, reitero a importância de livros como este tanto para cultivar o gosto dos públicos de hoje (consumidores ávidos de filmes e de séries) para a beleza da imagem desenhada e para o prazer da leitura literária.